domingo, outubro 27, 2013

O poder de quem perdoa

Na lógica de poder em que parece assentar a nossa sociedade, quem é forte e exerce sobre os mais frágeis a sua violência julga-se vigoroso e possuidor do maior poder. Contudo, um olhar mais atento constatará que, após o exercício da violência, quem detém o poder é o agredido. Não apenas num plano moral ou religioso. Se olharmos com cuidado, o agredido tem o poder mais vigoroso de permitir a reconciliação do agressor com a sua própria consciência. Se o agredido não perdoar, de nada valerá o desejo da reconciliação.

Ilustro esta minha constatação com uma história real, que ouvi contar ao coordenador nacional da pastoral penitenciária, Pe. João Gonçalves, que a terá ouvido de um membro da pastoral penitenciária brasileira. Em certo Estado brasileiro, ocorreu um assassinato de que resultou a detenção e punição do assassino. A mãe da vítima, feito o luto da morte do filho, convenceu-se de que o seu sofrimento de mãe não era o único sofrimento materno que aquele assassínio provocara. De algum modo, também a mãe do assassino do seu filho sofreria violentamente, pois – afirmava a mãe da vítima - nenhuma mãe cria um filho para o tornar um assassino. Firme na sua convicção, encontrou-se com a mãe do assassino do seu filho, a quem manifestou que, no seu íntimo, lhe tinha perdoado e, por isso, partilhava com a outra mãe a tranquilidade que aquele perdão gerava em si mesma. O perdão gerou laços entre as duas famílias que, após descobrirem partilhar a mesma fé, se encontraram, na prisão, por altura da Páscoa de um desses anos.

Sem o perdão, nenhuma daquelas mães encontraria descanso, sossego e tranquilidade de alma, pois a ofensa, quando não perdoada, encarrega-se de devorar o ofensor e o ofendido, destruindo o seu íntimo.

O desafio cristão de perdoar setenta vezes sete, expressão semítica com que se pretende referir o sem-limite, é, para além de um enorme repto de teor religioso, em si mesmo uma manifestação de profunda leitura do íntimo humano. Quando há ofensa e não ocorre o perdão, todos perdem e jamais se encontra a paz.

Desta certeza se dá nota num dos mais belos filmes da história do cinema, a «Lista de Schindler», num densíssimo diálogo entre o bondoso Schindler e o demoníaco Amon, chefe de um dos mais tristemente célebres campos de concentração, o de Płaszów. Vale a pena recordar o diálogo.

Diz Amon, já ébrio, a Schindler- «Sabes? Olho para ti. Observo. Nunca estás bêbado. Isso é verdadeiro controlo. Controlo é poder. Isso é poder.»

Faz-se silêncio. Um silêncio denso, de quem está a procurar a verdade.

Schindler quebra o silêncio com uma pergunta.

- «É por isso que nos temem?» - Referia-se aos que padeciam as atrocidades dos nazis, nos campos de concentração.

 Amon responde, com crueldade: - «Temos o poder de matar. É por isso que nos temem.»

Schindler riposta, usando, primeiramente, a linguagem que Amon entende, para, depois, o levar onde pretende.

- «Temem-nos porque temos o poder de matar arbitrariamente.

Um homem comete um crime. Não o deveria ter feito. Mandamo-lo matar, e sentimo-nos muito bem por isso. Ou matamo-lo com as nossas próprias mãos e sentimo-nos melhor. (Schindler refere-se, aqui, à crueldade do próprio Amon e não a si mesmo) Contudo, isso não é poder. É justiça. É diferente de poder. Poder é quando temos todas as justificações para matar… e não o fazemos.»

Amon, surpreendido e desarmado, pergunta: - «Achas que isso é poder?»

Schindler responde-lhe com a linguagem que Amon entende: - «Era o que os imperadores tinham. Um homem roubava uma coisa, era levado perante o imperador… Atirava-se ao chão, implorava misericórdia. Sabe que vai morrer. E o imperador perdoa-lhe.»

 Amon já não entende nada: - «Acho que estás bêbado.»

 Schindler remata: - «Isso é poder, Amon. É poder.»
Na verdade, estou convencido de que este é, de facto, o maior poder que possuímos. É o poder de dar nova vida a quem sente que não merece desculpa, mas encontra, no perdão do outro, uma nova oportunidade. E a vida rejuvenesce.

Quão diferente seria o mundo se o poder que vigorasse fosse esse e não a ilusão do domínio do outro! Há ofensas difíceis de suportar, bem certo, como ilustra a história verdadeira acima contada, mas não aceitar perdoá-las duplica a sua agressividade, pois destrói, no íntimo, o humano que há em nós. Perdoar é uma força que permite olhar, de frente, o mal e destruir-lhe o seu poder demolidor. Já assisti à reconciliação de uma família desavinda há trinta anos porque o ofendido aceitou o pedido de perdão de quem ofendera… e todo o tempo de não perdão ficou com tons de tempo perdido. É por isso que vale a pena ousar exercer este poder de perdoar… Para ganhar o tempo. Para ganhar tempo!

quinta-feira, outubro 10, 2013

«Anda lá, anda lá»

«A partida definitiva de pessoas que amo ou admiro, bem como daquelas que não se vê quem as possa substituir, deixa-me sempre bloqueado e a ruminar a dor que me vai dentro. Por vezes, sinto vontade de escrever, de dizer, de gritar. Mas tenho medo das palavras, de tal modo elas descoram os sentimentos e atraiçoam o que dizemos na dor.»
Recolho de «a vida também se lê» palavras que tomo como minhas para prestar ao seu autor, D. António Marcelino, a minha homenagem de quem sente a unidade infinita de corações.
Para os que o conheciam, é sabida a sua impaciência perante a acomodação e o quietismo. «Anda lá, anda lá», eram as suas palavras de irrequietude contagiante. Com a sua passagem, nada podia continuar como dantes... Com a sua passagem pela nossa diocese de Aveiro, nada poderá continuar como dantes. Ainda não soubemos honrar, definitivamente, o dom que foi termos um Bispo que soube ser pioneiro: o sínodo geral e parcial (de jovens), o incentivo aos ministérios laicais, ao diaconado permanente, à formação, através do Iscra, a coragem de estar e permanecer onde outros não ousavam sujar os pés, a sinceridade de quem desarma. O tempo fará justiça por, talvez, em vida, ela não ter sido a devida. E a justiça passará por sabermos amar os nossos pastores e, neles, toda a Igreja, a começar pelos seus mais frágeis.
Muito ficou por falar, D. António, mas, agora, une-nos a comunhão dos santos.

quarta-feira, outubro 02, 2013

«l’État» somos nós


O momento de eleições é sempre um excelente pretexto e contexto para refletirmos sobre como nos vemos enquanto sociedade. Se como mera soma de indivíduos ou se como uma autêntica comunidade, se como uma mera convergência de interesses ou se como uma comum unidade de história e cultura, em dinâmica de construção coletiva para um futuro melhor.

Tendo sempre para o segundo fator de cada um destes binómios, mas reconheço-me, muitas vezes, quase ultrapassado pela realidade, que parece teimar em impor-me que já não há lugar para esperanças e ideais. Mas, como me apraz repetir, posso não mudar o mundo, mas espero morrer com a consciência tranquila de que tentei fazer a minha parte.

A frase que serve de título a esta reflexão partilha autorias. No seu original, atribuído ao Rei-Sol, Luís XIV, pronunciada, muito provavelmente, em 1655, a frase dizia «l’État c’est moi» (O Estado sou eu) como manifestação do despotismo iluminado, que encontrou a sua expressão máxima, entre nós, em D. João V, em D. José e no seu ministro, Sebastião José de Carvalho e Melo, que ficou para a história como Marquês de Pombal. O Estado parecia confundir-se com uma pessoa, o que o tornou uma entidade distante e pouco geradora de simpatias e cumplicidades.

O tempo passou, mas as marcas dessa visão do Estado permanecem. O Estado continua, para muitos, a ser uma entidade longínqua e distante, algo abstrata. Tal visão, acrescida da carga totalitária mais recente com que determinados movimentos quiseram conotá-la, tem favorecido a perda daquele que deveria ser o sentido genuíno e ético do Estado moderno, que pretendo consubstanciar na nova formulação da afirmação: o Estado somos nós. E temos a particular sorte de estarmos num momento em que já se distanciam no tempo as conotações ideológicas e revolucionárias que poderiam trazer carga pejorativa à afirmação quase panfletária. Esta frase, dita, há cinquenta ou sessenta anos, poderia conotar-se com os ideais totalitários de algumas revoluções marcadamente ideológicas e pouco disponíveis para uma reflexão tranquila e serena como a que nos propomos fazer, agora. Conceção nada coincidente com a nossa visão do que deva ser o Estado e de como deva relacionar-se com a sociedade civil. Sou devedor, pelo contrário, da perspetiva cristã que sustenta que esta relação entre Estado e sociedade deve reger-se pelo princípio da subsidiariedade, que defende, desde Pio XI, na sua encíclica «Quadragesimo Anno», que, se uma estrutura mais próxima das pessoas pode garantir as respostas justas, não deve ser uma instância superior a fazê-lo. Neste registo, o Estado deve ser o garante de que a sociedade funciona e se baseia em valores estruturantes, sem, porém, ocupar todo o espaço que cabe à mesma sociedade. De outro modo, seria um Estado totalitário.

Concluir que o Estado somos nós é, neste momento, um repto fortíssimo, pois, se o Estado somos nós, de facto, o que a todos diz respeito por todos deve ser tratado com cuidado e especial dedicação. Tal afirmação exige uma outra atitude da parte de todos. Uma atitude que comece por compreender que dizer «Estado» não é o mesmo que dizer «governo», pois deste se espera que faça a boa gestão daquele, ainda que aquele o transcenda. Feita esta aclaração, decorre daqui uma exigência sempre nova: a de que cada um compreenda que o que é de todos a todos deve pertencer e por todos deve ser bem tratado. Uma exigência que é, primeiramente, ética, moral. A de cada um contribuir com o que é devido para que, na hora de beneficiar, receba o que é de direito. Verifica-se, porém, que, como se fosse reminiscência daquela visão distante do Estado, cada cidadão parece mais apto a exigir o que é de direito do que a cumprir o que é devido. Tal posição desequilibra a balança da relação, pervertendo-a.

Se se pretende maior lisura da parte dos políticos ela deve verificar-se, também, entre os cidadãos. Aliás, é importante notar que a política não é um exercício de alguns, mas, originalmente, a condição de quem vive em sociedade, na cidade (em grego, pólis). A cidadania é, aliás, uma outra forma de dizer esta mesma condição (em latim, civitatem, de que vem «cidadania», quer dizer «cidade»). Como podem pretender reivindicar mais moralidade entre os «políticos» aqueles que fogem à sua obrigação de pagar os impostos devidos, com mentiras sobre a sua real condição, agindo fraudulentamente para com todos, muitas vezes com o argumento de que sobre a sua vida privada nada têm a ver os outros? Como vivemos em sociedade, todos os nossos atos têm repercussões coletivas, pelo que devem ser bem refletidos.

A este propósito, Camões dizia que «o rei fraco torna fraca a forte gente», porém, o contrário também é verdade. Se «a gente» está na mentira, pactua mais facilmente com a mentira de quem gere a coisa pública. Merecem reflexão, neste contexto, os números recentemente publicados por um estudo feito pela faculdade de economia do Porto que referem que existirá uma economia paralela correspondente a cerca de 26% do PIB, perfazendo um volume de mais de 44 mil milhões de euros. Números que devem fazer refletir. Se o Estado somos nós, como podemos estar-nos a fazer isto?

É certo que os incentivos vão em sentido contrário. Parece ser mais compensador dizer-se a inverdade de que não se está casado quando até se está, como se tal pudesse ser uma legítima estratégia de gestão fiscal, sendo, afinal, um modo imoral de escapar ao dever de pagar impostos. Casar parece ser, em termos fiscais, mais penalizador do que não se estar, matéria em que o Estado dá, ele mesmo, um sinal perigoso para a sua própria sustentabilidade futura. Ou afirmar que se tem um rendimento inferior pois - diz-se - o dinheiro dos nossos impostos «vai sempre para os mesmos». Ou tantas outras estratégias dissimuladas usadas para abafar a consciência.

Se não ousarmos combater esta ideia tão enraizada de que o Estado seja um alvo longínquo a abater, em vez de o entendermos como a organização necessária da sociedade, será difícil que o próprio Estado não avolume a sua desconfiança em relação aos próprios cidadãos, sinal que vem, também, sendo dado e motivador de particular preocupação. É esta confiança que serve de base à ideia da presunção da inocência até prova em contrário. Tal princípio não se pressupõe nas ditaduras. Se os cidadãos não fizerem tudo para manter essa confiança, poderão estar a reunir as condições para que regimes desconfiados tomem conta dos seus destinos. Vale a pena o sacrifício, para que possamos continuar a dizer que «l’État» somos nós.

Caminhada pela vida | Contra rótulos e preconceitos, os factos. Simplesmente, os factos

  Artigo originalmente publicado em https://diocese-aveiro.pt/cultura/ No dia 6 de abril, sábado, o país mobilizou-se para afirmar que a...