sexta-feira, dezembro 16, 2016

O limite da vontade é a liberdade!

O título parece paradoxal, mas uma reflexão cuidada permitirá constatar que não o é. Aliás, a sensação de paradoxo nasce, estou convencido disso, dessa identificação que o título dissocia: a liberdade não é mera indeterminação da vontade.
Há muitos responsáveis por essa confusão, mas importa, antes de os identificarmos, darmo-nos conta de que, ao falar de liberdade, estamos no âmago do sentido das sociedades modernas. E, se juntarmos a esta constatação, a consciência de que, por nos reconhecermos como seres racionais, o que pensamos condiciona, tremendamente, como vivemos a realidade pensada, então, maior é a importância de uma reflexão cuidada sobre liberdade. Para mais quando a nossa sociedade ocidental, em geral, e portuguesa, em particular, se propõe defender a possibilidade de infligir a morte (a si ou a outro), em nome da referida liberdade. Será que o horizonte de legitimação de que o matar ou o matar-se possam defender-se como admissíveis não deveria ser suficiente para questionar se o conceito de liberdade que o sustenta é correto? Não deveria ser evidente que jamais se poderá admitir a legitimidade do matar ou do matar-se sem ser em nome da defesa da vida (por exemplo, em caso de legítima defesa) e nunca em nome da disponibilidade de si que acaba quando de si se dispõe?
Simplifiquemos a reflexão sem a banalizar.
Antes de mais, é importante ter consciência de que o modo como pensamos a liberdade condicionará (afetará) o modo como a viveremos. Buscaremos ser livres à medida da ideia de liberdade que perseguirmos. E, se essa ideia estiver errada, será em busca de um erro que andaremos.
Ora, estou precisamente convencido de que a ideia de liberdade que se invoca para legitimar a eutanásia ou a ideia de suicídio nobre está errada e parte de uma confusão entre liberdade e voluntarismo.
Não será preciso ir para além do século XIX para perceber essa confusão. Autores como Nietzsche e Schopenhauer estarão entre os primeiros a contar nessa lista. E veja-se como a sua posição confirma a convicção que aqui iremos defender. O seu pensamento conduziu-os a um pessimismo, em relação à existência humana e em relação à razão humana que não podemos, sem graves consequências, aceitar e subscrever.
Liberdade é, para os seus discípulos, a indeterminação da vontade; de modo simplificado, poderemos dizer que é a possibilidade de fazer o que a vontade assim determinar, sem qualquer outro condicionamento. Parece óbvio e aceitável, mas, quando refletimos com cuidado, percebemos que, por ser pouco, se identificamos liberdade com isto, rapidamente nos afundamos num modelo de existência humana que a torna desumana.
Em meu entender, é precisamente aqui, nesta definição, que reside o problema. A vontade, de acordo com esta abordagem, fica sem qualquer condicionamento iluminador da razão ou da inteligência que é, afinal, aquela que pode assegurar as condições para a liberdade. Ser livre, para o voluntarismo, baseia-se no querer. Para esses, limitar o querer é impedir a liberdade. Logo, os outros, os que podem limitar o querer, são um estorvo. «O inferno são os outros», dizia Sartre, coerentemente com esta linha de pensamento. De facto, se liberdade for isto, os outros impedem-nos de sermos livres.
Porém, estou certo de que, não só os outros não são um impedimento à nossa liberdade, como são, inclusive, a sua condição de possibilidade. Não se pode ser livre sozinho. Tal como não se pode vir a ter consciência de si mesmo sem o contributo dos outros que fazem emergir a consciência de nós. Uma criança que fosse abandonada na selva aos três anos, poderia, eventualmente, sobreviver, mas jamais adquiriria consciência de si mesma sem o contacto com outros humanos. Que o digam as histórias de Kaspar Hauser ou de Victor de l'Aveyron. Os outros são, precisamente, a nossa condição de possibilidade de sermos humanos, de nos realizarmos.
E porquê?
Porque, tal como o demonstra a etimologia da palavra liberdade (libra era, em latim, a balança de dois braços em que se procura o justo equilíbrio), ser livre é ter condições para escolher. E escolher significa pôr em ação o pensamento, discernir e deliberar, diante de vários cenários, escolhendo o melhor. Logo, não será livre o mero ato de fazer o que a vontade quer, mas sim a capacidade de se mobilizar para colocar a vontade ao serviço do que a inteligência leva a concluir ser o melhor.
Fumar, por exemplo, é, seguramente, um ato da vontade de alguém, mas estou em dúvida sobre se será um ato livre. Estou certo de que muitos fumadores gostariam de se «libertar» da vontade que continua a querer fumar!

Ora, neste quadro, ser livre não pode significar, jamais, escolher morrer. A morte provocada, por não ser em defesa do melhor para a vida, poderá ser um ato de vontade, mas não será, seguramente, um ato livre. Porque a liberdade realiza a humanidade que há em cada um; não a extingue. 

quarta-feira, novembro 30, 2016

A eutanásia legalizada matar-nos-á a todos

O título é dramático, mas a situação não é para menos. Temos vindo a assistir ao emergir de um tsunami ideológico que tem feito subir o mar da indiferença, sem que nos apercebamos de ele nos estar a submergir.
Na verdade, se é certo que não há dores não tratáveis, que a resposta para as fases terminais de doenças graves passa pela melhoria dos cuidados paliativos, que a alternativa à eutanásia não é ter de suportar dores incomportáveis, que a eutanásia não é um ato médico, mas um ato de matar, que o prolongamento indevido da vida à maneira de um «encarniçamento terapêutico» é um erro ético, então, a que se deve esta obsessão de legalizar a morte a pedido, realizada com o contributo dos técnicos de saúde, pondo em causa que se é médico ou enfermeiro para curar e cuidar?
E a resposta vai sempre bater ao mesmo sítio. Argumenta-se que legalizar a eutanásia só afeta os que a pedem. E isso, mais uma vez, não é verdade.
Ninguém nasce sozinho como ninguém morre sozinho; ninguém enriquece sozinho como ninguém empobrece sozinho; ninguém se educa sozinho como ninguém se torna rebelde sozinho; ninguém se cria sozinho como ninguém se destrói sozinho; ninguém se torna humano sozinho como também ninguém se desumaniza sozinho. Somos seres em e de relação. O que fazemos aos outros afeta-nos a nós; o que nos fazem a nós afeta os outros; o que, também, fazemos a nós próprios repercute-se nos outros.
É o mesmo Estado que pretende legalizar a eutanásia, a pretexto de ser uma decisão individual, aquele que se sente legitimado para nos punir se não utilizamos cinto de segurança, quando, na verdade, supostamente, só a nós mesmos nos penalizamos se não o usarmos. Mas, aqui, o Estado – e bem! – quer dar o sinal de que temos a obrigação de não nos fazermos mal ou de não descuidarmos a nossa própria proteção. Porquê, então, abandonar-nos à dramaticidade de decidirmos sobre a antecipação da morte, num momento tão dramático como o da maior fragilidade em face da doença?
É este mesmo Estado que, agora, se propõe legitimar a morte efetiva, com o pretexto de ser matéria meramente individual.
Mas não é verdade que seja matéria meramente individual.
A legalização da eutanásia faz recair sobre todos os que se sentem em situação de maior fragilidade a suspeita de que a sociedade os quer ver mortos.
Se a eutanásia for legalizada, todo o doente em fase terminal, que morrer de modo natural, terá sido, durante os seus anos de vida, um sobrevivente à lei. E isso não poderá senão significar que a lei é inumana.
Só se compreende esta vertigem individualista à luz do emergir do tal «tsunami ideológico» que se vai apoderando das nossas sociedades ocidentais: um tsunami que dá pelo nome de «libertarismo». O movimento libertário é transversal à direita e à esquerda e define-se como a sustentação da convicção de que, em primeiro lugar, está o indivíduo, que se define como autossuficiente e insuscetível de qualquer limitação por parte dos demais. É bom que se tenha a consciência de que o movimento libertário não se limita a sustentar a legalização do aborto, da eutanásia, da prostituição, etc. A sua intenção vai bem mais longe e, por isso, como muito bem observa Michael Sandel, no seu livro «Justiça: fazemos o que devemos?» (editado pela Presença), é uma visão que perpassa todos os quadrantes políticos: no limite, o libertarismo defende a ideia de «autopropriedade» e que o que for consentido é legítimo, sendo que o que não for explicitamente consentido não é legítimo: a própria venda de órgãos próprios, se consentida, pode ser legítima; já a aplicação de qualquer imposto, se não for consentida, é inaceitável para o libertário: propõe, por isso, o fim todos os impostos e que, quem é rico, fique com tudo o que recebe, pois, se o conquistou pela sua liberdade, com que legitimidade vêm outros (o Estado) retirar-lhe o que é seu?
Este mesmo libertarismo legitima, no limite, comportamentos como o do canibal de Rotemburgo (2001) em que dois adultos acordaram que um mataria e devoraria o outro, sob pretexto de que era uma decisão entre duas pessoas livres.
É esta a visão de sociedade que pretendemos defender?
Mas é esta a visão que se propõem defender os libertários que reivindicam que a morte de um humano é assunto só seu. Se a morte de um humano for assunto que só a si diz respeito, também a vida deixará de merecer a preocupação e cuidado de todos. Não é esta a presunção que assistiu à proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos e não é, também, a que sustenta a visão de Estado Social que, paradoxalmente, dizem defender muitos dos que se associam à tentativa de legalização da eutanásia. Se esta for legalizada, como acontece nos países que já o fizeram, todos os que regressarmos a casa depois de uma fase grave de doença, seremos sobreviventes de uma guerra silenciosa que se travará nos hospitais nacionais.
Só a dramatização das decisões poderá despertar as consciências para o que está em causa. Os que querem que se morra não podem matar com eles os que querem que se viva.

sábado, outubro 29, 2016

Muito mais do que um rumor de anjos - A modernidade significa o fim da religião?

Ouço, em fundo, Arvo Pärt. Não é por acaso. A vida e obra deste compositor estoniano ilustram, na perfeição, o que me proponho analisar, ao longo deste artigo: a morte da ideia de que a modernidade conduziria ao fim da religião. Ouvir Arvo Pärt, ouvi-lo em «Orient-Occident», em «Arbos», «Passio», «Fratres», confirma a omnipresença do religioso na vida de alguém que assistiu à ocupação soviética do seu país por um longo inverno de 50 anos, ocupação que fez da tentativa de silenciar a «obscurantista» religião um dos seus grandes fins.
Assistimos, durante décadas, à defesa da ideia de que a religião perderia a sua relevância social com o avançar da modernidade. Esta tese, designada como teoria da secularização, encontra a sua paternidade em M. Weber, mas encontra em Peter Berger um dos seus maiores mentores dos finais do século XX. De tal modo que as suas obras são traduzidas para chinês, nas décadas de 90, e é mesmo convidado pelo governo da China para ali apresentar as suas ideias, já depois de 2000.
A tese era simples e podemos encontrar a sua formulação, recorrendo, por exemplo, à definição que nos apresenta a wikipedia:
«A secularização é um processo através do qual a religião perde a sua influência sobre as variadas esferas da vida social. Essa perda de influência repercute-se na diminuição do número de membros das religiões e de suas práticas, na perda do prestígio das igrejas e organizações religiosas, na influência na sociedade, na cultura, na diminuição das riquezas das instituições religiosas, e, por fim, na desvalorização das crenças e dos valores a elas associados. A partir do século XIX, houve um progressivo declínio da influência das instituições religiosas tradicionais. Este declínio verificou-se tanto na prática dos fiéis, como na dificuldade crescente em recrutar clero para o desenvolvimento e manutenção da instituição. A maior parte dos estudos versou a tentativa de compreensão deste fenómeno.»
Enunciada deste modo, a secularização, entendida num registo de secularismo, parece ser uma certa insofismável do fim da relevância da religião, a que não resta senão dar o crédito de quem aguarda pela sentença de morte.
Nada mais errado.
Quem o reconhece é o próprio guru da teoria da secularização, Peter Berger.
Num livro recentemente publicado, em cuja primeira edição espanhola de agosto de 2016 me baseio, Berger afirma: «levei 25 anos a chegar à conclusão de que a teoria da secularização se tornou empiricamente insustentável. Anunciei a minha mudança de parecer com muito estrondo na introdução a um livro que editei em 1999, a «des-secularização do mundo». Acreditei ser importante sublinhar que esta transformação na minha forma de pensar não respondia a uma conversão filosófica ou teológica. […] O que sucedeu foi muito menos drástico: tornou-se cada vez mais evidente que os dados empíricos contradiziam a teoria. Com algumas exceções – sobretudo na Europa e na intelectualidade internacional – o nosso mundo é tudo menos secular; é tão religioso como sempre, e em alguns lugares, ainda mais». Peter Berger dixit!
Este reconhecimento é duplamente relevante. Em primeiro lugar por provir de quem o assume. Peter Berger é, provavelmente, o mais influente sociólogo da religião do último meio século. Em segundo lugar, porque, como ele mesmo reconhece neste livro, uma teoria sociológica não tem, apenas, uma dimensão abstrata e descritiva. Uma teoria sociológica tem, também, uma dimensão normativa e constitui-se como um paradigma. Dito de outro modo: a teoria serve a prática e condiciona-a, tremendamente. Não é difícil perceber que a ação política, a forma de legislar, tem sido altamente condicionada por esta teoria. Quantos conflitos se têm gerado em nome do silenciamento do religioso, em nome da certeza de que o que se está a fazer é, afinal, acelerar algo inevitável? Ora, o que Peter Berger vem afirmar, nesta obra, é que a teoria da secularização deve ser substituída pela do pluralismo. (Melhor seria, como afirma Fenggang Yang, chamar-lhe «pluralidade»). O que temos, hoje, é a pluralidade: seja de experiências religiosas, seja de discursos: temos o discurso secular a conviver com o discurso religioso.
Tal constatação bergeriana constitui um enorme desafio, seja para as relações entre as Igrejas/religiões e os Estados, seja no âmbito mais restrito da ação evangelizadora da Igreja, no contexto eclesial cristão. O centro não deveria, já, estar na preocupação com a eficácia do discurso secularizante, mas antes na realidade da pluralidade, o que recentra na busca da especificidade da cosmovisão cristã diante de outros discursos religiosos e já não tanto na dúvida sobre a relevância do discurso religioso.
A verificação de que esta mudança de visão, da parte de Peter Berger, já começa a gerar frutos é visível no próprio mundo chinês, ainda devedor da visão marxista/maoísta de que a religião é ópio. Também ali começam a notar-se a brechas na barragem do discurso secularista: em maio de 2014, na universidade de Purdue (EUA), realizou-se um simpósio com juristas, ministros e estudantes chineses, subordinado ao tema «liberdade religiosa e sociedade chinesa», tendo-se celebrado o «consenso de Purdue sobre liberdade religiosa», assinado por 52 pessoas e publicado em 14 de maio de 2014. Disto nos dá conta Fenggang Yang, um dos autores convidados para participar no livro de Peter Berger, «os numerosos altares da modernidade», agosto de 2016 (Ediciones Sígueme), que serve de base à reflexão que aqui apresento.
A conclusão a tirar do que aqui apresentamos é clara e podemos enunciá-la com palavras de Detlef Pollack, um outro autor convidado a participar nesta obra: «no que respeita à teoria da secularização, era correta a intuição de que se desenvolveu um discurso secular influente, que se uniu ao discurso religioso e inclusive gozou de uma posição de privilégio tanto na sociedade como na mente do indivíduo. Mas estava equivocada ao assumir que o discurso secular expulsara a cosmovisão religiosa e que, agora, poderia dominar por completo as definições da realidade e das escalas de valores. Diante dos pressupostos da teoria da secularização, a modernização não conduziu inevitavelmente à total secularização da sociedade. Antes, a consequência ineludível da modernidade foi a diversificação das cosmovisões e dos sistemas de valores.»
E regresso a Arvo Pärt… E ouço, em contemplação religiosa a música que, feita de notas que são sinais que permitem a manipulação das vibrações sonoras, me elevam para além do lugar físico em que me encontro. O discurso que explica a música não esgota a densidade da música que ouço.
O âmbito religioso é muito mais do que um verniz que banha a madeira. É a seiva que irriga o interior da árvore. Pretender secá-la e substituí-la não altera, apenas, uma certa forma de a madeira de apresentar: modifica a sua natureza. O homem é intrinsecamente religioso, mesmo quando age «como se Deus não existisse». Porque ser humano é transcender-se e corresponder ao desejo de transcendência. Em boa-hora veio o reconhecimento da sociologia. Assim a saibam ouvir os que têm nas mãos os destinos do mundo! Porque este é muito mais do que um rumor de anjos (título de uma das obras de Berger): é o fragor da água que brota da nascente definitiva!

sexta-feira, setembro 30, 2016

Aborto e casamento entre pessoas do mesmo sexo - As notícias que não foram notícia


 Começo o artigo desta edição com uma homenagem devida àquela que muitos designam como a «pequena imprensa», a imprensa regional, recebida na simplicidade dos lares portugueses e daqueles que, pelo mundo fora, levam a língua de Camões aos mais recônditos recantos da Terra. Esta homenagem nasce de uma constatação. À dita «pequena imprensa» se tem devido a coragem de romper as agendas em que se oculta a dita «grande imprensa». Na verdade, as agendas dessa dita «grande imprensa» nem sempre coincidem com o sentir mais genuíno e autêntico do povo português. Sob a capa da liberdade, que, quanto mais certa menos autêntica, essa mesma «grande imprensa» cumpre os desideratos de quem se esconde, veiculando valores e convicções que se vão consolidando, ao arrepio do real quadro moral dos seus leitores, embalando-os num discurso que, quando despertam, já não conseguem repudiar por se sentirem isolados.
Foi a grande imprensa que fez os referendos do aborto, em 1998 e 2007; foi a dita «grande imprensa» que legitimou, sob a capa de defender direitos humanos, a legalização de modelos de casamento pretendendo equiparar o que não era comparável; será a «grande» imprensa que, um dia, legalizará a prostituição ou envolverá o Estado nos negócios da maternidade e paternidade de substituição, para tal bastando-lhe procurar os veículos para legitimar o que a sensibilidade ética denunciaria como ilegítimo… Mas é, também, a grande imprensa que oculta as notícias quando elas não confirmam as suas agendas. Nessa hora, cabe à «pequena imprensa» desvendar, com parcas armas, as sombras deixadas pelo gigante.
Vem isto a propósito de dois acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que a grande imprensa se encarregou de abafar e fazer de conta que não tinham existido.
Após ter-se combatido, durante cerca de uma década (entre 1998 e 2007), a dura luta da defesa da vida humana no ventre materno, perdida para os que entendiam que a vida humana só é inviolável às vezes, e que se escudavam no pretexto de que abortar pudesse ser um direito humano, o Tribunal Europeu dos Direitos humanos deliberou, sem possibilidade de recurso, em 16 de dezembro de 2010, com 11 votos a favor e 6 contra, que o aborto não é um direito humano e, por isso, é legítimo que os Estados o penalizem.
No mesmo sentido, mas agora sobre matéria de candência mais recente, o mesmo tribunal veio, em 9 de junho de 2016, afirmar, inequivocamente, que a convenção europeia dos direitos do Homem não reconhece que o casamento homossexual seja um direito humano e, por isso, não obriga nenhum Estado a abrir o direito ao casamento a um casal homossexual. É, ainda, mais interessante esta decisão porque confirma anteriores decisões no mesmo sentido, de 24 de junho de 2010, de 16 de julho de 2014 e de 21 de julho de 2015, sendo que a deliberação de junho passado, reconhecida como definitiva em 9 de setembro, teve a aprovação dos 47 juízes que compõem a Câmara que assumiu tal posição. Para algum leitor mais curioso, deixo aqui o link para que possa confirmar a verdade destas afirmações: http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-163436


Após ler estas linhas, estou seguro de que qualquer leitor se sentirá, no mínimo, defraudado com a dita «grande imprensa» por verificar que alguém não anda a contar toda a verdade. A pergunta que se impõe terá de ser: «a quem serve esta ocultação da verdade?», seguida de uma outra interrogação não menos inquietante: «como deixámos que nos tomassem por ingénuos?». Na verdade, a estratégia da retórica da «grande imprensa» é sempre a mesma: conduzir à convicção de que as mudanças são imparáveis e que, afinal, só uns quantos irredutíveis é que ainda não mudaram. E, como não há tempo para pensar e não se quer ficar do lado dos ultrapassados, somos levados na vertigem de ir para algum lado, nem que não se saiba bem para onde. Se é certo que, em matéria de turismo, esta até pode ser uma atitude interessante, em matéria moral e ética, este experimentalismo comporta consequências nefastas. Que o digam os mais de 17 mil abortados que não puderam, em cada ano, depois de 2007, ver a luz do dia. Que o digam os mais jovens de entre nós, para quem ser família é, hoje, uma realidade difusa, raramente marcada pela estabilidade e pelo respeito pela diferença. Alguns interrogam-se sobre como pudemos ter uma das mais baixas taxas de natalidade do mundo. E procuram nas razões económicas o seu fundamento. Julgo que erram no alvo. O motivo mais profundo está num progressivo corroer do que significa realizar-se na diferença e no respeito pelo outro, anterior à convicção egoísta de que o outro terá é de me respeitar a mim. Descentrámo-nos dos outros e concentrámo-nos em nós e isso não pode dar bom resultado. Como diz, com graça, um amigo de longas discussões: quando se redigiu a «declaração universal dos direitos humanos» alguém se esqueceu de lhe associar a «declaração universal dos deveres humanos». É que o centro deve estar nesta reciprocidade de aceitar que não nos realizamos sem os outros e que é no encontro com os outros que nos fazemos mais humanos. De outro modo, a nossa liberdade acaba nos outros em vez de se realizar com os outros. E esse tem sido o erro em que nos temos vindo a afundar. Urge uma nova agenda da «grande imprensa» que não sirva interesses de secretos e ocultos desejos, mas seja autêntico serviço em prol de uma sociedade da diferença e do respeito. Uma sociedade em que as discussões sobre o que importa não se façam sobre a espuma das ondas momentâneas, mas com tempo e capacidade de distinguir para não confundir. 

sábado, agosto 27, 2016

Eutanásia, aborto e outras debilidades… A vertigem sedutora

A história tende a repetir-se e, com ela, os erros já outrora cometidos e as lições entretanto esquecidas. Constatar isto não deveria sossegar-nos nem aquietar-nos ao reconhecimento de que é assim e não poderia ser de outra maneira. E ficarmo-nos por um encolher de ombros e um menear de cabeça, seguidos de um descontraído traulitar indiferente.
Quem tem memória (seja do passado, seja de futuro) não pode deixar de olhar com uma incrível sensação de «déjà-vu» para o percurso que estamos a fazer em direção à legalização da eutanásia. O mesmo caminho que nos levou à legalização do aborto, e, mais para trás, à aceitação argumentada da eliminação dos «débeis mentais». A legalização do aborto é mais recente; a dos «débeis mentais» é mais longínqua e, por isso, menos presente na memória coletiva. Dela já só nos resta a imagem das atrocidades cometidas em plena Segunda Guerra Mundial, às mãos dos que se consideravam herdeiros da grande cultura alemã. E olhamos com repulsa para o que ali foi cometido. Esquecemos, porém, porque convém esquecê-lo, como se pôde chegar ali.
É pouco sabido quão entranhado estava o eugenismo na sociedade europeia, antes da Segunda Guerra Mundial. O seu estudo ajudaria, seguramente, a ter muito mais prudência na aceitação, sob que argumento for, de todo e qualquer atentado contra a dignidade da vida humana.
Entenda-se por eugenismo, para facilitar e não nos alongarmos em definições, a defesa de que seja legítimo, em nome da melhoria da genética humana, criar incentivo à procriação dos que têm «bons genes» e entraves à disseminação dos «maus genes». Esta formulação parece inócua e sem perigos. Se pensarmos, porém, que tal exercício terá de implicar considerar uns como dignos de procriar e outros como indignos de tal, talvez a situação já se nos afigure menos legítima e logo nos ressuscite os fantasmas do nazismo. E é bom que o faça, mas sem esquecermos que o nazismo levou a uma dimensão exponencial aquilo que fora ganhando lastro em parte significativa da sociedade europeia.
Teremos de recuar a 1885, como recorda Matt Ridley, no seu livro «Genoma: autobiografia de uma espécie em 23 capítulos» (Gradiva, 2001), onde se narra, com detalhe, a história negra desta fase da cultura ocidental, para encontrar o autor do termo «eugenia». Deve-se a Francis Galton, um primo de C. Darwin (o autor de «a origem das espécies», preconizadora do evolucionismo), a criação deste termo com que ele pretendia defender uma ideia que Ridley enuncia de forma muito lapidar: «deixem-nos melhorar a linhagem da nossa espécie, tal como melhoramos a linhagem das outras. Deixem-nos reproduzir os melhores, e não os piores, espécimes da humanidade» (Ridley, p. 298) Esta começou por ser uma ideia meramente científica, mas que, rapidamente, começou a ganhar foros de ideia política e social. Em nome de uma intenção que parecia justificar-se a si mesma (reduzir a existência de genes perturbadores do desenvolvimento humano) e de uma possibilidade que a ciência parecia assegurar, a ideia foi ganhando adeptos, muito antes de Hitler operacionalizar em larga escala uma intenção que parecia ingénua. No período que vai de final do século XIX até à Segunda Guerra Mundial, poucos países conseguiram resistir à vertigem eugenística, introduzindo, nos seus quadros legais, medidas que previam o impedimento de casamento a pessoas que eram consideradas suscetíveis de transmitir genes indesejados ou medidas ainda mais agressivas. Em 1911, seis Estados norte-americanos previam a esterilização forçada dos que eram considerados mentalmente incapazes. Em 1917, já eram 15 os Estados norte-americanos com leis deste teor e, em 1931, chegavam a 30. Em 1924, os Estados Unidos aprovaram uma lei da imigração (Immigration Restriction Act) que limitava a entrada de imigrantes provindos do sul ou leste da Europa, sob pretexto de serem «biologicamente inferiores». Com base em leis aprovadas no período entre 1910 e 1935, mais de 100000 pessoas foram esterilizadas sem a sua autorização (Ridley, 300). E não se pense que a matéria se confinou ao contexto americano. Países tantas vezes apontados como modelo de modernidade e progresso como o Canadá, Suécia, Noruega, Finlândia, Islândia, incluíram leis eugénicas nos seus quadros jurídicos. Só a Suécia, com lei de 1934, esterilizou mais de 60000 pessoas sem a sua autorização (Ridley 300). Como bem recorda o mesmo autor a quem devemos estas informações, o auge desta vertigem demolidora encontramo-lo no regime nazi que «esterilizou 400000 pessoas e, depois, assassinou muitas delas. Na Segunda Guerra Mundial, em apenas 18 meses, 70000 doentes psiquiátricos alemães já esterilizados foram gaseados apenas para libertar camas de hospital para os soldados feridos». (Ridley 300-301).
E a surpresa de quem acompanha este avolumar de informação não termina se nos decidirmos a enunciar alguns dos nomes dos preconizadores destas medidas. Encontraremos entre eles figuras destacadas que, seguramente, após a guerra, teriam de rever a sua posição. Destaco os nomes de Keynes, economista de renome, George Shaw, escritor de origem irlandesa, e W. Churchill, que, em 1910, escreveu uma carta ao então primeiro-ministro britânico, defendendo legislação eugénica para que «a maldição dos doentes mentais morresse com eles» (Ridley 304). A Segunda Guerra Mundial e as atrocidades cometidas a pretexto de princípios eugénicos mostraram quão errado era o raciocínio. Mas com que custos e tão tardiamente!
O assombro que estas informações nos devem provocar não pode senão acordar-nos. Como recorda o mesmo Ridley, muito poucos países resistiram a esta vertigem sedutora, no período que antecedeu a Segunda Guerra. Entre eles, a resistência mais acentuada encontrou-se nos países de matriz católica. O reconhecimento da dignidade inviolável da vida humana tinha raízes e revelava que este «canto da sereia» não podia estar certo.
Invocar para aqui o «canto da sereia» obriga-nos a recordar a cena da Odisseia, de Homero, que nos conta, no canto XII, a saga de Ulisses que, regressando da batalha de Tróia para a sua cidade de Ítaca, tem de passar pela ilha das sereias, as mulheres-pássaro cujo canto melodioso, se ouvido, seduz até à morte. Ulisses, para poder prosseguir viagem, sela os ouvidos dos companheiros, com cera, para que não possam ouvir o canto melodioso que seduz e, querendo ser o único a ouvir tal canto, pede aos companheiros que o prendam, com firmeza, ao mastro da nau. Mesmo quando, ao ser seduzido, pede aos companheiros, com um franzir de sobrolho, que o libertem, o que consegue é que os companheiros ainda apertem mais o laço que o prende ao mastro.
É preciso que alguém nos prenda ao mastro. As sereias têm seduzido e levam-nos à morte. Ítaca não é, porém, aqui.
Quem tem ouvidos para ouvir ouça…


domingo, agosto 07, 2016

Recensão

 António MARUJO - A lista do Padre Carreira. Amadora: Vogais, 2016, 205 pp.
O livro que é um filme!


1994 é um marco na minha vida e tê-lo-á sido, certamente, na vida de muitos amantes do cinema, mas, também, da História. Recordo-me de, nesse ano, ter visto, na tela do cineteatro ‘avenida’, em Coimbra, o filme «a lista de Schindler», de Steven Spielberg. Guardo na memória o silêncio com que o público ouviu, até ao último acorde, a envolvente melodia, genialmente tocada ao violino por Itzhak Perlman, que acompanha o fim deste filme que passa de preto e branco a cores, quando os sobreviventes salvos por Schindler depositam uma pedra sobre o seu túmulo.
Até então, desconhecia quem era Oskar Schindler e, sequer, Aristides de Sousa Mendes, Sampaio Garrido, Brito Mendes ou Padre Carreira. Foi pela mão do cinema que o mundo conheceu o nome daquele empresário checo que salvou mais de mil judeus das garras do nazismo.
O tempo veio a resgatar do esquecimento outros nomes e Portugal reconciliou-se com alguns dos seus concidadãos que ocupam, hoje, um lugar singular entre aqueles que o Yad Vashem (Autoridade para a Memória e Heróis do Holocausto, em Jerusalém) reconhece como ‘justos entre as nações’. Recordo-me de, com o tempo, me ocorrer que nos faltava um Steven Spielberg que levasse à tela do cinema a nobreza e ousadia de Sousa Mendes, a quem devem a vida mais de 10 mil judeus, ou a ação de Sampaio Garrido e Teixeira Branquinho, que salvaram cerca de 1000 pessoas, ou a discreta mas corajosa decisão da família Brito Mendes, a quem se deve a vida de uma menina judia (destas comoventes histórias nos fala, com detalhe, o livro que aqui apresentamos).
A leitura do livro de António Marujo, ‘A lista do Padre Carreira’, que a editora Vogais faz chegar às mãos dos leitores portugueses, fez-me regressar a 1994. António Marujo, qual Spielberg no cinema, conta, com detalhe e fundamentação, a ousadia e coragem de um padre português, no tempo da Roma tomada pelos nazis, entre 1943 e 1944, e a quem o Yad Vashem reconheceu, em 2014, a condição de ‘justo entre as nações’. Como em 1994, a emoção da leitura fez-me silenciar perante a memória de um homem que ousou arriscar a vida, concedendo ‘asilo e hospitalidade no Colégio [Pontifício Português] a várias pessoas que eram perseguidas na base de leis injustas e desumanas’. Mas António Marujo não nos oferece, apenas (e já não seria pouco!), uma narrativa vívida e intensa das condicionantes da decisão do Padre Carreira, permitindo-nos regressar àquela época e compreender os meandros que adensam a carga de coragem que envolvem a escolha do padre português. Também outros problemas que dizem respeito à ação da Igreja no contexto da II Guerra Mundial são aqui retratados, com verdade e honestidade, numa descrição que vai à raiz de cada matéria. A discussão sobre a atuação do Papa Pio XII encontra aqui novos elementos que tornam incontornável a visita a este livro para uma qualquer análise que se pretenda honesta e documentada.
Se é certo que a biografia de alguém é sempre um campo aberto, não é infundada a afirmação de que «este livro é a biografia definitiva» do Padre Carreira. António Marujo, que faz jus aos seus méritos de jornalista premiado internacionalmente (recebeu, por duas vezes, o Prémio Europeu de Jornalismo religioso na imprensa não-confessional, atribuído pela Fundação Templeton e Conferência das Igrejas Europeias, em 1995 e 2006), descreve, aqui, com uma fluidez de escrita que prende quem a lê, os momentos mais marcantes de uma vida, que, afirmando-se como singular pela decisão de acolher os refugiados que se salvaram no Colégio Pontifício Português, não se esgota nesse tempo e escolha. A coerência da vida que se configura nessa escolha transparece nos muitos documentos, nos diversos acontecimentos e múltiplos testemunhos com que se constrói a narrativa. António Marujo não deixa pontas soltas. O que diz tem motivos: justifica-o e fundamenta-o. É por isso que este é um livro ímpar. Lê-lo é participar de um ato de justiça porque resgata do esquecimento a memória de um justo esquecido.

terça-feira, julho 26, 2016

O segredo da educação - O novo conto de ‘a princesa e o sapo’

Nunca duvidei do lugar imprescindível do amor na educação. Aliás, seria muito estranho pensar que o saber, que é experiência que se comunica, pudesse transmitir-se esquecendo partes fundamentais do que somos. Seria muito pouco se ensinar e aprender fosse apenas assunto de inteligência. Tudo o que somos está envolvido na aprendizagem. Como podiam ficar de fora dimensões tão importantes como a capacidade de afetar e ser afetado, a vontade ou as vivências anteriores, a determinação de querer ir mais longe, etc.? Talvez aqui, aliás, resida muito da falha do nosso sistema educativo!
Mas, se a intuição, a experiência e a minha formação cristã sempre mo tinham mostrado e desvendado, uma história que me foi contada, há dias, demonstrou-me a verdade da intuição.
A história, que contarei adiante, logo me trouxe à memória o conto da princesa e do sapo. Todos a conhecemos, mas retemos, habitualmente, o momento que as versões modernas do conto conservam. No momento em que a princesa beija o sapo, ele transforma-se num belo príncipe por quem ela se apaixona.
Sempre achei esta versão muito pouco realista, redutora do amor a uma dimensão sentimental que está, seguramente, presente no amor, mas que não o esgota.
Fui à procura, por isso, da versão em que se baseiam as adaptações modernas do conto. Todas elas têm uma fonte comum: os contos da infância e do lar, dos Irmãos Grimm, de que encontrei uma edição muito recomendável, publicada pela Temas e Debates, em 2013.
Ao ler-se a versão transmitida por estes contistas alemães, no início do século XIX, a que dão o título de ‘O rei dos Sapos ou Henrique-de-ferro’ [Henrique é o nome do criado do Rei] logo nos apercebemos de que a história não é bem como se nos costuma contar. Como é habitual nos contos originais dos Irmãos Grimm, a história não é delicodoce. Cruzarei, nesta interpretação, a versão contada pelos Irmãos Grimm e a que nos chega de Hessen, vinculando-me contudo a esta última (vinda de Hessen), pois a história que nos é contada pelos Irmãos Grimm descreve, com desnecessária e gratuita violência, o momento que antecede a transformação do sapo em príncipe.
Numa e noutra versão, porém, o motivo pelo qual o sapo se transforma no príncipe sobre quem recaíra uma maldição não é um qualquer beijo ou manifestação de afeto, mas, antes, o cumprimento do compromisso de dar guarida ao sapo, assumido pela princesa. Esta, aliás, só o faz porque o pai lhe recorda que «o prometido é devido» e, perante a quase desistência da filha, lhe lembra, mais adiante, que «não deves desprezar quem te ajudou quando estavas em apuros».
Não há, na versão original, um beijo, mas um sinal de que o amor é fiel, permanece firme e leal à palavra dada de reconhecer o outro como alguém merecedor da nossa dedicação e entrega, mesmo em horas mais difíceis e quando ele se possa assemelhar ao sapo da história.
Vem isto a pretexto de uma situação ocorrida, numa certa escola, há muito pouco tempo e que me foi contada por alguém que com ela contactou.
Estamos no contexto do primeiro ciclo (antiga ‘escola primária’). Há, numa determinada turma, uma criança que, apesar de já bem alongado o segundo ano, não sabe juntar duas letras, não consegue fazer qualquer simples operação matemática e, para agravar (ou, talvez, como fruto disso) perturba e impede os demais de aprenderem. O quadro familiar em que vive é de abandono. É de todos conhecida a situação, retratada como de negligência, pelo que se acionaram todos os procedimentos que redundaram numa adoção. É adotada por uma família que mora noutro país. Decorridos alguns meses (menos de meio ano), sabe-se que a criança não só já sabe ler como aprendeu a língua do país para onde foi residir. Um milagre! - Dirão alguns. Sim, o milagre de se saber amado por um pai e uma mãe que restituíram àquela criança a consciência e a vivência de ser pessoa.
Não há, aqui, o beijo da princesa, mas a segurança da fidelidade e da estabilidade de um lar familiar que dá a confiança e a tranquilidade necessárias para que aconteça a aprendizagem.

Já o disse muitas vezes: se um dia fosse (não o pretendo!) dirigente de uma qualquer autarquia, as questões de família seriam a prioridade das prioridades. Não é possível resolver os muitos problemas que nas escolas se ampliam como numa lupa sem que as famílias sejam lares onde ser criança é saber-se reconhecida como pessoa humana, digna e merecedora de amor. O segredo não está na versão moderna da «princesa e do sapo». Temos muitos beijos efémeros que não restituem a consciência da dignidade. Precisamos de regressar à versão original de Hessen. É preciso um outro modo de viver o amor que não seja só o afeto e a emoção, mas a fidelidade e a persistência que conferem segurança e confiança. 

terça-feira, julho 05, 2016

«Laico» e «laicidade» não aparecem na Constituição da República Portuguesa

É frequente ouvir-se a afirmação de que o Estado Português é laico. A afirmação, de tão frequente, conduz, seguramente, à convicção de que a Constituição o defina, explicitamente, assim. Mas tal não corresponde à verdade. Em nenhum momento a Constituição adota tal terminologia para se referir à relação entre o Estado e as religiões. A este propósito, terá de se percorrer o texto da Constituição até ao seu artigo 41º para encontrar os traços com que este documento fundamental define a relação entre o Estado e as Igrejas. E é interessante perceber o que ali está vertido.
Antes, porém, de nos acercarmos desse conteúdo, importa assumir a consciência de que, ainda que o texto constitucional definisse o Estado como laico, seria sempre necessário esclarecer do que estaríamos a falar, pois uma tal designação inclui, desde uma visão positiva da laicidade, que a entende à maneira Americana (como bem recordava, no século XIX, Alexis de Tocqueville), em que a diversidade religiosa é respeitada e bem acolhida, sempre que a sua ação se repercute em bem comum, até à visão mais negativa, de índole jacobina, que a entende como o silenciamento do religioso, nas suas manifestações públicas, entendendo que o Estado deve fazer de conta que as religiões não existem.
Tal precisão seria, porém, necessária se os constituintes tivessem entendido que o texto optasse por uma definição lapidar. Contudo, não foi assim. E é interessante o que se decidiu que o texto constitucional refletisse.
Vejamos o que se diz no artigo 41º, que reproduzimos, aqui, integralmente, a partir da versão oficial presente no site da Assembleia da República.
«Artigo 41.º
Liberdade de consciência, de religião e de culto
1. A liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável.
2. Ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas convicções ou prática religiosa.
3. Ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa, salvo para recolha de dados estatísticos não individualmente identificáveis, nem ser prejudicado por se recusar a responder.
4. As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.
5. É garantida a liberdade de ensino de qualquer religião praticado no âmbito da respetiva confissão, bem como a utilização de meios de comunicação social próprios para o prosseguimento das suas atividades.
6. É garantido o direito à objeção de consciência, nos termos da lei.»
Destaquemos o que é afirmado no ponto 4 do artigo: «As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.»
É curioso que o registo seja colocado no prisma da liberdade das Igrejas e não, primeiramente, no prisma da independência do Estado em relação a elas, o que, em nosso entender, revela que os constituintes souberam aprender com a história europeia (hoje, a laicidade é vivida de forma equilibrada, em grande parte dos países da Europa, sendo marginal a leitura laicista que, porém, com frequência, procura reemergir. Não é, porém, despiciendo recordar que alguns dos países mais frequentemente apontados como defensores da liberdade não se eximam a ter com as igrejas uma prática de relação aberta e visível. Como não recordar a realidade britânica ou nórdica em que existe, inclusive, uma religião oficial?) e com a história portuguesa. Na realidade, pode-se, de forma geral e abstrata, considerar que Portugal passou por três modelos de vivência da laicidade, no contexto da República. Na primeira República, viveu-se uma laicidade entendida no prisma acima descrito como «jacobino»: a religião era um elemento a eliminar, como pretendia Afonso Costa (que, em 23 de março de 1911, segundo Gomes Araújo, ou 21 de março do mesmo ano, segundo Monsenhor João Gonçalves Gaspar, afirmou, no Grémio Lusitano da Maçonaria, que acabaria com o Catolicismo em duas gerações, apesar de, segundo consta, ter educado os seus filhos num colégio de jesuítas, na Suíça); muito se perdeu de força viva da sociedade portuguesa, com essa opção e a 1ª República muito deve a esta opção a sua curta duração e tão marcante instabilidade. Na 2ª República, viveu-se uma laicidade que era mais formal do que real, havendo uma mútua cumplicidade que se revelou penalizadora, quer para o Estado, quer para a Igreja; muitas lições se retiraram desse período. Por fim, na 3ª República, a laicidade é entendida no prisma do respeito pela liberdade e diversidade religiosas, sem que tal signifique o silenciamento do papel público da religião e o esquecimento do profícuo contributo recíproco. Este tem sido o entendimento e a vivência. A esta luz encontraram-se diversas soluções (são exemplos a concordata, celebrada em 2004, entre o Estado e a Igreja Católica, e acordos entre o Estado Português e o Estado de Israel para a reabilitação das judiarias), merecendo particular destaque o que ocorre no âmbito da educação, em que as religiões podem dar o seu contributo positivo e construtivo, que é sobejamente reconhecido, no âmbito de uma disciplina (educação moral e religiosa), em que, por respeito para com a liberdade religiosa, a frequência é facultativa. Respeitando, aliás, um acórdão do tribunal constitucional de 1987, a presença da disciplina no sistema educativo expressa o que é afirmado no artigo 41º anteriormente recordado, na medida em que é por uma escolha expressa dos pais e encarregados de educação que a disciplina é proporcionada aos alunos. A liberdade religiosa é assegurada (a ninguém se impõe) e a separação em relação ao Estado também está salvaguardada, na medida em que, se é certo que ao Ministério da Educação cabe homologar os programas das disciplinas apresentados, contudo, é reconhecida às respetivas autoridades religiosas a competência para a sua elaboração. Do mesmo modo, em respeito para com o princípio da subsidiariedade, o Estado socorre-se do serviço das comunidades religiosas, numa parceria respeitadora das respetivas identidades, para prestar um serviço que é público. É importante, aliás, que se entenda que o serviço é prestado às famílias. Não é um serviço às religiões, contrariamente ao que alguma discussão pretende afirmar. Aliás, o conhecimento do programa desta disciplina, na sua configuração católica, permitirá constatar que, de facto, em nada se confunde com formação catequética ou com qualquer tipo de proselitismo. É um serviço no âmbito da formação ética, moral e de cultura religiosa, no quadro de uma matriz com que os pais e encarregados de educação se reconhecem.
Pretender ver nesta parceria uma qualquer quebra da adequada separação entre Estado e Igrejas seria o mesmo que, por se ver um qualquer partido presente numa manifestação de um sindicato, se achasse que estaria a ser infringido o artigo 55º da constituição que afirma que «as associações sindicais são independentes do patronato, do Estado, das confissões religiosas, dos partidos e outras associações políticas, devendo a lei estabelecer as garantias adequadas dessa independência, fundamento da unidade das classes trabalhadoras.»
Valeria a pena, aliás, quando tantas interrogações se pretende colocar sobre a suposta quebra de separação entre Estado e Igrejas ao assegurar-se uma disciplina que é clara, transparente, e em que todas as condições de lecionação são mais do que escrutinadas, manter essa finura de análise para tentar perceber se, pelo país fora, sob a capa da neutralidade e da autonomia do pensamento não se estará muitas vezes a veicular ideologias que os pais não subscrevem e não pretendem, ao arrepio, aliás, do que se define no artigo 43º, que afirma que «o Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas.»
Sublinhe-se que, na medida em que o acórdão de 1987 do Tribunal Constitucional definiu as condições para a disponibilização da disciplina de Educação Moral e Religiosa, ficou, em definitivo, afastada qualquer possibilidade de recair sobre esta disciplina a suspeita de que pudesse estar a infringir este mesmo artigo 43º, na medida em que a sua frequência é assegurada apenas para os que a escolhem de forma explícita.

Hoje, aliás, a presença de uma disciplina que se designa como Educação Moral e Religiosa, podendo ser (de acordo com a escolha dos pais e encarregados de educação) de matriz Católica (em respeito para com o celebrado no acordo entre Estados que é a Concordata), Evangélica, Judaica, etc., é garante de que, não só estamos num contexto de separação (assegurada pela escolha explícita), mas também de diversidade, o que não pode senão enriquecer a realidade cultural e educativa portuguesa. Os preconizadores de que a sua existência possa infringir o princípio de laicidade (que nunca é mencionado, de forma explícita, na Constituição) não estão a ver a questão no seu ângulo correto e pretendem um regresso a erros de onde já vimos e para onde não queremos voltar. A existência de uma disciplina como Educação Moral e Religiosa é uma oportunidade. E as oportunidades não se rejeitam: aproveitam-se!


(PS: Já depois de redigido este artigo, encontrei, no livro «Um erro de Afonso Costa», da autoria de Amadeu Gomes de Araújo, uma declaração de Mário Soares, que é oportuno reproduzir: «A I República, em parte, caiu pelo conflito entre a República e a Igreja Católica. Depois do 25 de Abril, quando regressei do meu exílio em França, trazia uma ideia na cabeça: não repetir a luta entre o Estado Laico e a Igreja Católica. E assim actuei sempre como a Igreja Portuguesa sabe bem - e o Vaticano - desde que tive responsabilidades no Portugal de Abril, apesar de não ser religioso, como se sabe.» 

Importa que esta sensatez não seja esquecida, sob pena de dar lugar à insensatez de repetir erros cometidos!)

quarta-feira, maio 11, 2016

Sobre os contratos de associação: sim, a sua defesa é uma questão de justiça!

Começo por fazer uma declaração de interesses: mesmo contra o meu interesse individual, sou a favor daquilo que os contratos de associação, na educação, defendem. Pelo facto de ser professor numa escola pública de iniciativa estatal, não perdi a noção do que está em causa e, como sempre me pautei pela verdade e fidelidade aos valores que considero fundamentais, não é porque eu possa ser afetado nos meus interesses individuais que deixarei de os defender.

Quem existe primeiro: o Estado ou a sociedade? O que fica em causa com o fim dos contratos de associação?
O que está em causa não é, nem pode ser, só uma questão de gestão dos recursos financeiros. Se assim for, o Estado social morreu! É, aliás, o que está em causa em alguns Estados americanos em que se discute, por exemplo, se faz sentido financiar, publicamente, doenças que foram contraídas por motivo de comportamentos tidos por quem as padece (por ter fumado, por ter conduzido com excesso de velocidade, etc…). O raciocínio não pode ser reduzido à mera discussão de cifrões, quando em causa está a justiça e uma liberdade tão fundamental como a de educar. Para mais, esta discussão tem mostrado todo o tipo de números: uns demonstram que a escola pública de iniciativa estatal é mais cara, outros que é mais barata… Bem parece que os estudos e resultados são feitos à medida de quem os solicita!
O caráter pantanoso desta motivação obriga a ir ao que é fundamental. E o que é fundamental é o que nos dizem a Constituição e a lei de bases do sistema educativo, ambas fazendo decorrer o que aqui está em discussão de um princípio que tem estado esquecido: o princípio que afirma que o Estado é subsidiário da sociedade. O Estado existe porque existe a sociedade e não o contrário. O Estado deve ser garante da justiça e da equidade e não o destruidor da sociedade porque a pretende absorver e substituir. É bom que se afirme, aliás, que nem a iniciativa estatal nem a iniciativa privada são, só por si, garantia de justiça. A justiça está-lhes acima: ambas são um meio para a sua realização, pelo que nunca se devem absolutizar. O que torna boa uma resposta não é o facto de ser de iniciativa do Estado ou de ser de iniciativa privada, mas sim se respeita a justiça e a equidade, o bem comum e a integralidade da pessoa.

Quem é o primeiro responsável pela educação das crianças: o Estado ou os pais?
Mas regressemos à enunciação do princípio acima invocado. Tal princípio, designado como «subsidiariedade», afirma que «quando uma instância mais próxima consegue assegurar a resposta a um problema, de forma justa, não deve ser a superior a assegurá-la». Na constituição, este princípio, em matéria de educação, é garantido, entre outros, no artigo 67º, em que se afirma que ao Estado incumbe «c) Cooperar com os pais na educação dos filhos», o que significa reconhecer-lhes, aos pais, o papel original e ao Estado o subsidiário em relação aos pais em matéria de educação. Este princípio é repercutido na lei de bases do sistema educativo, em que se afirma, no artigo 57º, que «é reconhecido pelo Estado o valor do ensino particular e cooperativo como uma expressão concreta da liberdade de aprender e ensinar e do direito da família a orientar a educação dos filhos». Tal definição de motivos afasta o caráter provisório da possibilidade de uma rede pública com iniciativa estatal e particular. Não é por razões conjunturais, mas sim fundamentais, que existe rede pública com iniciativa estatal e particular, sendo que quem opta, gozando a liberdade constitucional, por uma escola pública de iniciativa particular, não deve ser avaliado como estando a ter um privilégio, mas sim como usufruindo de um direito que deve ver respeitado. É, aliás, muito estranho o raciocínio dos que defendem que quem escolhe uma escola pública de iniciativa particular não deve ver garantido o seu direito só pela razão de estar a fazer uma determinada escolha ou opção bem definida, como se, por esse motivo, tivesse, necessariamente, de pagar a sua escolha. Como se escolher fosse sempre um privilégio e não correspondesse a um direito! Seria curioso aplicar este raciocínio a quem o defende: defenderia, por exemplo, que, por alguém ser eleito por um determinado partido, só pelo facto de ser de um partido identificado, o seu vencimento fosse pago pelo partido por que foi eleito? Ou que, por se ser representante de um sindicato determinado, se tivesse de ser remunerado por ele? Em nenhum destes casos se pretende aplicar o raciocínio que se utiliza quando em causa estão as escolhas dos outros. O direito constitucional de escolher o modelo de educação que se pretende tem de ser salvaguardado. E o melhor modo tem sido, de facto, através dos contratos de associação. Este tem sido o instrumento que tem permitido que todos, ricos e pobres, beneficiem do serviço público que lhes é prestado, mesmo que em instituições de iniciativa particular. Ora, o que deveria discutir-se é se a justiça e o acesso de todos está garantido e em que condições e não pôr em causa a sua possibilidade como se na iniciativa estatal se esgotasse a oferta pública. Se tal afirmação fosse verdadeira, nesta como noutras áreas, então teríamos de concluir que só um modelo coletivista de Estado seria justo e equitativo. O público reduzir-se-ia ao que é de iniciativa estatal. Nada caberia no estatuto de serviço público senão isso. E o que seria de todas as entidades coletivas de utilidade pública, tantas delas de iniciativa particular e que têm mantido de pé esta nação quando tudo o mais desaba?
Será essa a ideia de Estado que se quer preconizar? Será essa a ideia de equidade que se pretende defender?

O ensino público de educação só deve ser prestado por instituições de iniciativa estatal?
E o que dizer de tudo o que agora se discute, quando se constata que do que estamos a falar é de apenas 1% de todos os estabelecimentos de educação do país, quando, comparando com casos como a Holanda, concluímos que, aí, entre 70% a 80% dos estabelecimentos públicos são de iniciativa particular, num regime semelhante ao dos contratos de associação?
Para quem possa interpretar esta posição como motivada por qualquer intuito que não o da simples defesa dos valores aqui evidenciados, socorro-me do que ouvi, de viva voz, em 2010, no Fórum «Pensar a Escola, Preparar o Futuro», ao insuspeito professor Guilherme d’Oliveira Martins, então presidente do Tribunal de Contas e ex-ministro da Educação de um governo do Eng. António Guterres: «As redes têm de buscar e encontrar tudo o que seja criador, construtivo, tudo o que tenha a capacidade de fazer crescer e desenvolver. Por isso, ao falar de redes de serviço público de educação, temos de referir as várias componentes, as várias iniciativas – social, privada e estatal. Todas essas iniciativas têm que se complementar, nenhuma pode ser desperdiçada, e a liberdade de ensinar e aprender é algo que tem de ser profundamente assumido em todas as suas consequências […] devendo a lógica de rede contrapor-se ao centralismo e à orgânica hierarquizada. Se bem repararem, a maior parte das vezes encontramos um consenso discursivo sobre a liberdade, mas depois há uma grande dificuldade prática em cumprir, há uma grande distância entre o que se diz e o que se faz.» Estas não são palavras minhas. São do Professor Guilherme d’Oliveira Martins e podem ser lidas, na íntegra, na revista que recolheu as conferências proferidas no fórum acima referido, promovido na Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa. (Conferir Revista Pastoral Catequética 23, 2012, p. 72-73). A revista é de 2012, mas reproduz conferências de 2010.
O professor Guilherme d’Oliveira Martins vai ainda mais longe, concretizando estes pressupostos e recordando que «em Portugal tivemos uma experiência extraordinária, que foi a criação da rede de educação pré-escolar. Uma vez que se tratou da criação de uma rede nova, tivemos um enorme sucesso, porque foi possível envolver à partida as várias iniciativas. Só isso garantiu esse sucesso e não foi feito aquilo que tradicionalmente se faz, que é construir de cima para baixo o sistema e ter a ideia de que o Estado vai fazer tudo.» (p. 73) A rematar a sua conferência, o ex-ministro sublinha que «o serviço público de educação assenta, pois, na ideia democrática do pluralismo, na ideia de que as diferenças e que o reconhecimento das diferenças é fundamental para assegurar que a liberdade seja igual e que a igualdade seja livre [pois] ao falarmos de serviço público de educação, estamos a referir o serviço das pessoas, pelas pessoas e para as pessoas.» (p.74)

Já não é de hoje o objetivo de acabar com o pluralismo na educação…
Há, na forma como se está a denunciar os contratos de associação, muita ideologia em jogo e muita falta de transparência. E não se pense que estou a sustentar o enriquecimento de grandes grupos com a educação. Isso não faz parte dos meus interesses nem das minhas motivações. Estou, sim, a recordar-me da história do nosso país que, sempre que eliminou a diversidade de escolhas, na educação, conduziu o país ao naufrágio. Disso, o melhor exemplo é o do Marquês de Pombal que, como bem recorda Jorge Buescu, no seu ensaio «Matemática em Portugal: uma questão de educação», extinguiu o ensino ministrado pelos jesuítas, conduzindo o país a um descalabro que durou 150 anos (cfr. P. 61). Henrique Leitão, Prémio Pessoa em 2014, faculta argumentos para fundamentar esta afirmação, no programa Visita Guiada de 10 de novembro de 2014, dedicado à forma como o Marquês de Pombal criou a ideia falsa de que os jesuítas eram contra a ciência, ideia que lhe criou as condições para orquestrar a sua expulsão de Portugal, com graves custos para a cultura científica no país.
O momento exige frescura de espírito, coragem para olhar para os valores que estão em causa e distância para abordar a matéria sem ideologias, nem liberais, nem estatizantes. O que deve estar em causa não deve ser quem tem os interesses mais poderosos, mas a defesa de um direito a escolher como quero educar os meus filhos. E esse deve ser um direito insofismável e não apenas reservado a quem tem condições financeiras para o exercer. Os contratos de associação têm sido o melhor instrumento para o assegurar.

quarta-feira, maio 04, 2016

Estará o mundo com amnésia?

O nosso tempo tem andado muito esquecido. Esquece-se com facilidade! Anula a memória de si e a memória que o possa incomodar. E isso significa faltar à verdade. Que o diga a ideia grega sobre o que é a verdade.
Para os gregos, «verdade» dizia-se com palavras como «ousía» («a verdade do ser»), «orthót(ê)s» («retidão, coerência»), mas também «alêtheia». Vale a pena determo-nos nesta última palavra, que nos servirá de guia para esta reflexão.
«Alêtheia» – «verdade» - compunha-se de «lêtheia» precedido de um prefixo de negação, «a». Ora, «lêtheia» tem origem em «lêthos» que quer dizer «esquecimento», «ocultação». Ser verdadeiro era, a esta luz, «não se esquecer», «não ocultar», poderíamos dizer «revelar». É curioso, aliás, que um dos rios que os gregos diziam existir no Hades (Inferno), segundo a cosmologia helénica, tivesse o nome de «Letes». Diziam os gregos que os mortos que bebessem das suas águas esqueciam toda a sua vida passada, pois o Hades era o lugar do esquecimento… O que fazia do Inferno, numa interpretação ampla, o lugar da mentira, da anulação, da perda da identidade. Hoje, alguns teólogos recuperam algo desta abordagem, ao falar do Inferno como uma possibilidade real de total anulação da identidade e da pessoa.
Servem estas reflexões de prisma de análise da sociedade em que nos movemos. Sociedade em que a verdade parece distante das decisões e das ações de quem nela se situa. Desde os Panama Papers aos sucessivos esquecimentos de quem fez falir banco após banco, passando pelo doping no desporto até à mentira na prestação de provas em exames de acesso à universidade, ou, ainda, à manipulação de dados sobre as emissões de gases poluentes pelos veículos automóveis, a falta de verdade parece grassar como uma amnésia coletiva.
O rio Letes parece ter desaguado bem perto de nós e os vivos decidiram brindar com as suas fascinantes águas.
E repare-se como pensar a verdade como o «não esquecimento» ajuda a compreender de um outro modo a importância de não esconder as nossas origens ou a nossa memória. Recuperar a memória é um outro modo de respeitar a verdade, característica que este tempo, designado por Lipovetsky como hipermoderno, parece querer arredar e afastar com eficácia. Vivemos num tempo sem memória. Nem memória de passado, nem memória de futuro. Uma alimenta-se, aliás, da outra. Não há sentido do amanhã se não se sabe de onde se provém e que identidade se possui.
Discutir o problema da verdade pode, ainda, encontrar na cultura clássica, uma outra genuína dualidade que é aqui muito oportuna. A dualidade referida por Parménides, um filósofo do século V a.C., para quem havia que distinguir entre o ser, do âmbito da verdade, e o parecer, do âmbito da ilusão e do não-ser. Não deixa, à luz desta síntese muito sumária, de ser relevante verificar como vivemos num tempo que se satisfaz com a ilusão, estando, permanentemente, na fronteira do não-ser, da mentira. Vivemos, muitas vezes, à medida que, a conta-gotas, nos fazem sair as notícias sobre novos «esquecimentos», a sensação de estar num lugar de espelhos em que não sabemos o que é verdade e o que é ilusão.
Contudo, mesmo que nos queiram fazer crer que o «crime compensa», as lições recentes da história mostram-nos que até essa convicção é ilusão. A verdade pode demorar a emergir, mas é bom lembrar que a eficácia da água do Letes é efémera e temporária, porque vã. Na verdade, o Hades já foi vencido e Aquele que tem a chave dessa vitória chama-se «Verdade».

Mesmo numa comezinha leitura de curta distância, é fácil verificar que o fim dos que cederam à sedução de beber das águas do rio do Hades não foi honroso nem de saudável memória. Convirá, talvez, esquecê-lo… ou será melhor lembrá-lo para sempre?

sexta-feira, março 25, 2016

A grande ilusão - Pode o homem ser livre sozinho?

Grandes ilusões geram grandes desilusões. Assim é na vida; assim é na ordem do pensamento.
Vivemos tempos reconhecidamente individualistas, marcados por um egocentrismo cultural que parece levar de vencida uma batalha em que todos somos, em simultâneo, adversários e leais defensores, num combate absurdo, em que parecemos querer insurgir-nos ao mesmo tempo que nos rendemos como se a derrota nos fosse favorável. Queixamo-nos dele, mas vivemos dele, como se não pudéssemos dispensá-lo.
Este paradoxo da nossa sociedade contemporânea, a que já chamaram pós-moderna, hipermoderna, mas também anti moderna e, mesmo, época de crise, sem identidade nem definição, merece análise. Seja o que for que chamemos à nossa época, será difícil escapar ao reconhecimento de que se configura como um tempo de afirmação da autonomia entendida de forma solipsista [o indivíduo encerrado em si mesmo]: definimo-nos por oposição aos outros. Representa muito bem esta definição um propalado adágio que sustenta que «a minha liberdade acaba onde começa a do outro». Uma frase que, de tantas vezes repetida, se torna uma verdade em que pouco se reflete. Nela se concentra, porém, a visão que, de facto, se foi consolidando do que seja a liberdade: um exercício meramente individual em que os outros são um estorvo. Uma tal definição nasce, porém, de um tremendo erro. O erro em que parece gravitar uma certa linha de entendimento do que seja a modernidade.
Para nos entendermos, consideremos a modernidade como a era iniciada no século XV (é usualmente atribuído à queda de Constantinopla, em 1453, o estatuto de marco definidor do fim da idade média e início da moderna), que se afirma pelos valores da autonomia, pela ideia do progresso e pela importância do futuro. A modernidade vincula-se à ideia de afirmação do humano diante de tudo o que pudesse limitá-lo. Tal ideia, por si, positiva, contribuiu, porém, para a gestação de um conceito de liberdade como afirmação da identidade por oposição a outros, favorecendo a convicção de que o processo de libertação seja um dinamismo meramente individual, em que tanto mais se será quanto mais se afastar da relação com os demais. Neste quadro, apareceram movimentos fortíssimos que vincularam a modernidade a esta compreensão, influenciando, de modo decisivo, o pensamento ocidental, particularmente a partir do século XVIII (com nomes como Rousseau, Hobbes, Locke e tantos outros que ainda hoje continuam a chegar-nos, por exemplo, através de certas conceções pedagógicas), e cuja marca continua a sentir-se, talvez mais forte do que nunca, afirmando que antes da comunidade está o indivíduo. Mais ainda, sustentando que o ser humano só será na medida em que se afirmar como indivíduo, na sua solidão. Todo o pensamento liberal (nas suas mais diversas manifestações: da política à economia, da moral à própria teologia) tem a sua génese neste processo.
Como observa, porém, um dos grandes gurus desta visão da sociedade, no final do século XX, Francis Fukuyama, há aqui uma espécie de pecado original de que importa tomarmos consciência para começar a inverter este processo que não poderá senão conduzir a sociedade ao seu próprio fim, pois uma tal visão faz da sociedade uma mera soma de indivíduos.
Fukuyama recorda, num dos seus mais recentes livros - «as origens da ordem política»-, que Rousseau, Hobbes e Locke estão entre os mais influentes preconizadores desta visão. Ora, continua Fukuyama, «qualquer um dos três pensadores considerou os seres humanos no estado de natureza enquanto indivíduos isolados, para os quais a sociedade não era natural. […] a sociedade humana surge apenas com a passagem do tempo e envolve cedências ao nível da liberdade natural.» Fukuyama vem a reconhecer, no referido livro, que, por oposição a estes, muitos séculos antes, «Aristóteles estava mais correto do que estes teóricos liberais dos primórdios da modernidade, quando afirmava que os seres humanos são políticos por natureza».
Tais afirmações devem levar-nos a reconhecer que o que nos define não pode ser uma certa ideia de liberdade em que os outros são um estorvo, mas uma ideia de liberdade em que a nossa realização só pode ocorrer porque nela e com ela também os outros se realizam. Melhor seria, assim, dizer que a nossa liberdade só aumenta na medida em que fizer aumentar a liberdade dos outros e diminuirá na medida em que fizer diminuir a dos demais.
A grande ilusão da modernidade – aliás, de uma certa modernidade! – foi admitir que alguém pudesse tornar-se mais humano sem os outros. Tal ilusão não poderia senão gerar enorme desilusão, pois parte de pressupostos errados, pressupostos sobre o que seja o ser humano que nada têm a ver com a real natureza humana. O homem só se torna humano na medida em que os outros suscitam nele a humanidade que está em potência. Tal reconhecimento faz de nós um-ser-para-os-outros e um-ser-com-os-outros. Tudo o que seja negação disto será negação do humano na sua própria definição.
E veja-se como tal pode permitir compreender como decisões que pressupõem um humano fechado sobre si mesmo, autocompreendido, são decisões suicidas e «geradoras» de morte. No contexto português atual, em que se discute a possibilidade da legalização da eutanásia, este é o erro de tal aceitação, na sua origem. Muitos, que defendem a eutanásia como se ela fosse uma espécie de suicídio perpetrado por outro, erram, precisamente, por pressuporem que o suicídio fosse um ato meramente individual. Nada mais errado, sendo que a eutanásia não é um suicídio, mas um ato perpetrado por alguém a quem caberia cuidar a pretexto da compaixão.
Como recorda a psiquiatra, Alexandrina Meleiro, na Revista Brasileira de Medicina (Set 2013) recuperando afirmações formuladas pelo filho de um suicida, «quando uma pessoa se mata, não se mata só a si mesma. Mata todos ao seu redor. Mata todos os que a amam. Condena todos os outros para sempre. O suicídio amaldiçoa os seus parentes e amigos para sempre. A pessoa que se mata condena e prende todos os outros.»

Importa superar a ilusão, para não redundar numa desilusão. E a sua superação só poderá ocorrer olhando, de frente, o humano real que somos, aceitando-o como é, nos seus limites, porque a fragilidade, a vulnerabilidade, fazem parte da sua identidade; são, aliás, a condição que nos torna recetivos aos outros e, por isso, afinal, capazes de ser afetados (o que os afetos demonstram!) por eles e, com eles, construir a identidade que somos que, enfim, é um nó de identidades em confluência. Nós somos pelos outros. Os outros são-no por nós. E isto não gera desilusão: realiza-nos!

sexta-feira, março 04, 2016

A crise de valores denuncia a crise do homem sábio

Nenhuma ação humana pode realizar-se sem ser movida por algum valor. Todo o homem que age (e até quando decide não agir) fá-lo em nome (consciente ou inconscientemente) de valores. Neste contexto, a amoralidade é uma possibilidade meramente abstrata. Assim, quando se fala de crise de valores, do que se está a falar é de uma inversão ou, mesmo, perversão da hierarquia dos valores. Aqueles que deveriam ser os valores prioritários são secundarizados, em nome de outros que, de segundos, passam a primeiros. Este é o enquadramento que permite, por exemplo, no contexto português, analisar como foi decidida a adoção de leis sobre o aborto ou como está a ser discutida a possibilidade de legalizar a eutanásia. Em ambas as discussões, os decisores políticos deixaram prevalecer valores secundários em relação a valores mais fundamentais e estruturantes.
À luz deste enquadramento, valerá a pena recuperar a ideia de que esta crise de valores tem uma outra crise latente, sobre a qual vale a pena refletir.
É que a inversão dá-se concedendo prioridade a valores mais imediatos em relação a outros que, por serem mais radicais, exigem que se reflita sobre eles e sobre a sua importância. E tal exige prescindir de seguir as emoções momentâneas para dar tempo ao raciocínio e à reflexão. E aí nasce o problema.
Na realidade, os grandes nomes da reflexão detida e serena, entre os quais poderemos invocar a autoridade dos Papas mais recentes (Bento XVI deu particular importância a esta matéria), mas também outros de quadrantes diferentes (Giovanni Sartori, Gilles Lipovetsky, Alain de Botton) vêm dizendo que vivemos uma crise que atinge o âmago do que nos define como homo sapiens. A nossa evolução distintiva fez de nós seres que souberam transcender as emoções, os instintos, em nome da razão e da reflexão cuidada e tranquila e, por isso, distante da intensidade dos acontecimentos. Esse é o papel que se espera, aliás, do direito e da justiça: conferir distância crítica para ajuizar bem. E «bem» é dando prevalência aos valores fundamentais em relação aos secundários.
Mas retomemos o fio do raciocínio. Para tal, recuperemos dados da reflexão de Giovanni Sartori que afirma que, se deixássemos alguém ser educado pela televisão ou pelos meios de comunicação social, essa pessoa seria incapaz de pensar com lógica, perderia, por isso, a dimensão de «sapiens», substituindo-a pela dimensão do «ver». O homo sapiens cederia o lugar ao «homo videns». Outros, ainda, na linha de Huizinga, reduzem o homem à dimensão do divertimento, designando-o como «homo ludens», o homem que joga, que se diverte. É, aliás, neste registo que Gilles Lipovetsky analisa esta fase da história em que estamos e a considera como «hipermoderna», uma era de deceção, em que nos distraímos para ocultar a interrogação sobre a vida. Esta hipermodernidade cria seres que desistem de viver a sua vida e se divertem a imitar idades que já não têm. Chama a estes indivíduos adultos, que se distraem sendo adolescentes, os «adultescentes». O que há de comum a todos estes retratos é algo inquietante. Estamos num tempo que desistiu de parar para pensar e interrogar-se sobre o sentido das suas ações, das suas decisões, enfim, da sua vida! É, aliás, este o desafio fundamental da ação e missão da Igreja, hoje. A Igreja tem respostas, a Igreja tem uma proposta de salvação para a humanidade; contudo, vale a pena saber se a humanidade se sabe perdida! Ter respostas quando não há perguntas cria um diálogo surdo. O grande repto é, sem dúvida, suscitar a interrogação, fazê-la emergir, pôr a pensar sobre a vida, e não dar como certo que o que muitos dizem ser aceitável corresponderá ao que é verdadeiro e certo. É de justiça, neste contexto, recuperar as sábias palavras do sempre oportuno Chesterton, no seu livro «Ortodoxia»: «Um homem deve ter dúvidas sobre si mesmo, mas não deve ter dúvidas sobre a verdade; ora, o que se passa hoje é exatamente o inverso» E este era um retrato do que se passava no início do século XX. Mas os gérmenes já lá estavam. Hoje, a convicção de que já não valerá a pena continuar a procurar a verdade gerou a certeza de que ela não existe. E, com a morte da verdade, a ética fica moribunda.
É curioso, por isso, constatar que, hoje, poucos terão feito tanto pela verdade e pela ética como a Igreja, ainda que muitos a pretendam acantonar num preconceito de obscurantismo e irracionalidade. O já referido Chesterton, agora pela boca de uma das personagens das suas obras de ficção policial, o Padre Brown, reconhecia exatamente o mesmo: «eu sei que as pessoas acusam a Igreja de diminuir a razão, mas o que sucede é o inverso. Na Terra, somente a Igreja atribui verdadeira supremacia à razão. Na Terra, somente a Igreja afirma que o próprio Deus está sujeito à razão.» E assim é, com efeito. É bom lembrar que nunca a Igreja cedeu ao nominalismo ou à visão arbitrária sobre as decisões divinas. A Igreja nunca subscreveu, por exemplo, as abordagens predestinacionistas, que defendiam que nada nos podia permitir saber qual o caminho da salvação.
E hoje, mais do que nunca, é necessário reconhecer que, sem o respeito pela verdade, pela busca insaciável do que ‘é’ e ‘deve ser’, geram-se as condições para a arbitrariedade que fará regredir o homem ao antes de si. «As pessoas que começam a lutar contra a Igreja em nome da liberdade e da humanidade acabam por combater a liberdade e a humanidade para poderem lutar contra a Igreja». Chesterton, de novo!
Neste retrato, fica evidente que a crise de valores expressa uma latente crise de verdade, de lógica, de pensamento, de razão e de lucidez. Como sempre, desde a sua origem, espera-se da Igreja, hoje, que continue a salvar a humanidade. E salvá-la, hoje, é continuar a exigir-lhe que reflita e que não decida sem refletir. Porque «sem verdade, cai-se numa visão empirista e cética da vida, incapaz de se elevar acima da ação porque não está interessada em identificar os valores — às vezes nem sequer os significados — pelos quais julgá-la e orientá-la.» (Bento XVI, Caritas in Veritate 9). A verdade é esse horizonte que permite discernir e interpretar os sinais dos tempos. De outro modo, como reconhecia o estoico latino Séneca, não haverá ventos favoráveis por andarmos sem destino. Pois, se andarmos e persistirmos no erro, sem com tal nos inquietarmos, andaremos errantes! Errar far-nos-á errantes! 

sexta-feira, janeiro 29, 2016

Porque seria um erro legalizar a eutanásia?



Para muitos, a legalização da eutanásia parece ser a última fronteira que falta transpor. Como se, ao transpô-la, se concretizasse o máximo exercício da liberdade humana, enquanto determinação perante a própria morte.
Contudo, a sua possibilidade é, pelo contrário, sintoma de uma inadequada conceção de liberdade sobre a qual importa refletir.
Tenhamos em conta, na nossa reflexão, três pressupostos.
O modo como nos pensamos condiciona o modo como nos vivemos. Aplicando ao que estamos aqui a analisar: o modo como pensamos a liberdade condiciona o modo como nos vemos ou não livres.
O segundo pressuposto a ter em conta diz respeito às dimensões que se envolvem no agir humano. Toda a ação humana só é humana na medida em que nela participar a razão, o afeto e a vontade. A razão conhece; o afeto sente; a vontade quer.
O terceiro pressuposto consiste na verificação de que nenhuma liberdade é sumamente individual. Toda a liberdade nasce dos e com os outros. Nenhum de nós - a psicologia demonstra-o e a teologia reforça-o - adquire consciência de si sem a participação e o envolvimento dos outros (dos pais, dos familiares, dos educadores, etc.)
Ora, invocando o primeiro pressuposto, é fundamental que a nossa conceção de liberdade seja adequada e real, de modo a que não esbarre contra o muro do irrealismo que a torne inumana. Sendo assim, importa ter em conta que toda a definição de liberdade humana deve ter em conta que ela não é possível fora de condições. Isto é, toda a liberdade humana é condicionada. Toda! Sem exceção. Pressupor liberdade sem condições é falar de algo que não é humano. Sendo assim, faz parte da definição do que seja a liberdade o facto de estarmos condicionados, pelo que é errada toda a conceção de liberdade que pressuponha o incondicionamento. Ser livre, em termos humanos, é, assim, algo que se realiza em circunstâncias concretas. Já o dizia Ortega Y Gasset: «Eu sou eu e a minha circunstância».
Mais ainda.
A liberdade concebida como possibilidade indeterminada, sem limites, é, à luz do anterior pressuposto, uma falsidade. O mesmo é dizer que defini-la como a possibilidade indeterminada de escolher é errar na definição. Então, terá de se substituir esta definição por uma outra que sirva os nossos pressupostos. Essoutra definição deverá ter em conta que a realização da liberdade não pode, de modo algum, conduzir à sua própria destruição. Liberdade humana que elimina o humano tem algo de contraditório. 
É, aliás, a esta luz que é fácil concluir que, por exemplo, o ato de suicídio não pode ser definido como um ato livre. Pelo contrário. Se olharmos para o segundo pressuposto que acima recordávamos, veremos que o suicídio poderia ser definido como um ato de vontade, mas não como um ato de liberdade. A vontade pode ter querido realizar esse ato, mas a liberdade, que terá de envolver todas as dimensões acima enunciadas, este ausente dessa decisão. A vontade quis, mas não participaram da deliberação, nem a razão, nem o afeto. Do mesmo modo, a análise, recorrendo ao terceiro pressuposto, concluirá, facilmente, que a decisão do suicídio é individual, mas não é livre, na medida em que supõe a ausência dos outros e não os integra na decisão.
Toda esta reflexão é de fácil transposição para a discussão sobre a eutanásia.
O pressuposto de quem defende a eutanásia é o de que seja livre a deliberação de terminar com a vida e que basta, para a concretização dessa decisão, envolvendo médicos e técnicos de saúde, apenas a verificação de que essa decisão resulta de um ato de vontade. Contudo, toda a experiência de contacto com quem se depara com a notícia de que a morte possa ser iminente comprova que quem diz querer morrer está a manifestar, sim, desejo de que o que lhe está a acontecer não acontecesse. E a resposta que deve ser dada não é a de acabar com a vida, mas sim a de conferir novo sentido ao que se vive, no pressuposto evidente de que, hoje, não há dores não tratáveis. Tratada a dor, deve ser abordado o sofrimento, que é um problema mais profundo, existencialmente falando. O sofrimento é da ordem do sentido da vida. Quem sofre precisa de que os demais se façam compassivos consigo, isto é, sofram consigo e apoiem na redescoberta de que, mesmo a vida vulnerável, frágil, continua a ser digna. Porque a dignidade não desaparece por se ter perdido a sensação de que se é digno. Ela é inerente à condição humana, por definição frágil. Um dos primeiros trabalhos, no contexto da fragilidade verificada na doença ou na velhice, é o de ajudar a recuperar a consciência de que se é digno, mesmo quando se está mais débil. Porque a dignidade não se perde quando emerge a vulnerabilidade. Pelo contrário. Numa perspetiva de sociedade, quando se está mais débil e vulnerável, maior é o desafio de a sociedade se envolver com o que a padece e sente, no sentido de o reconhecer como um de nós e um connosco.
Mas regressemos à interrogação sobre o erro de leitura de que enfermam os que pressupõem que a eutanásia deva ser admitida como um ato livre na medida em que corresponde a um ato de vontade.
Não é difícil recordar quantas situações do nosso quotidiano nos demonstram que nem sempre coincidem vontade e liberdade. Veja-se, a título de exemplo, duas situações.
É em nome da liberdade, como condição de possibilidade de realização pessoal, consciente de que não nos realizamos apenas individualmente, mas como membros de uma comunidade, que o Estado nos obriga a usar cinto de segurança. Ninguém senão nós estamos em perigo e, no entanto, o Estado, enquanto reconhece que temos o dever de nos proteger porque o que somos entrelaça-se com a vida dos demais, sanciona-nos se não o fizermos. Na mesma lógica, se alguém, que fez tentativa de suicídio, for transportado, por alguém, ao hospital, os técnicos de saúde têm o dever de tudo fazer para recuperarem a vida desse alguém que, afinal, pela sua ação voluntariosa (de vontade), estava a expressar parecer querer morrer. Contudo, por se saber que a vida prevalece sobre o ato de vontade e que nem sempre a ação da vontade é ação livre, a boa prática médica impõe que se cuide e, se possível, se cure aquela vida.
Ainda poderíamos recuperar um terceiro exemplo, bem mais estranho, mas que nos deve fazer pensar. Em 2001, a Alemanha foi surpreendida por uma história que obrigou a grande reflexão. Um homem tinha praticado canibalismo sobre outro a seu pedido. Em tribunal, o canibal alegara que tinha documentos que demonstravam que a sua ação tinha correspondido a um acordo entre os dois. Como decidir se se entendesse que, sendo uma decisão acordada entre dois adultos, devia ser respeitada, sem mais, como parecem alegar os que defendem a eutanásia?
Os tribunais vieram a condenar o perpetrador deste ato hediondo, alegando que a dignidade da vida se sobrepõe às decisões da vontade sobre ela, quando estas decisões redundam na sua desproteção e desrespeito.
Uma deliberação que deve ser tomada em conta, de novo, quando se parece querer regressar à discussão sobre a eutanásia. Digo «regressar», pois a matéria não é nova, bastando lembrar tantos e tantos casos semelhantes, ao longo do século XX. A eutanásia, como tantos erros que atentam contra o dever de respeito pela vida humana, sempre tentou justificar-se, em particular sob a capa de argumentos ditos modernos, mas que mais não são do que a deturpação do que deverá ser a modernidade: a defesa da autonomia respeitando a verdade da condição e da dignidade humana. De outro modo, a modernidade redundará num suicídio da própria humanidade.

Caminhada pela vida | Contra rótulos e preconceitos, os factos. Simplesmente, os factos

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