sexta-feira, janeiro 29, 2016

Porque seria um erro legalizar a eutanásia?



Para muitos, a legalização da eutanásia parece ser a última fronteira que falta transpor. Como se, ao transpô-la, se concretizasse o máximo exercício da liberdade humana, enquanto determinação perante a própria morte.
Contudo, a sua possibilidade é, pelo contrário, sintoma de uma inadequada conceção de liberdade sobre a qual importa refletir.
Tenhamos em conta, na nossa reflexão, três pressupostos.
O modo como nos pensamos condiciona o modo como nos vivemos. Aplicando ao que estamos aqui a analisar: o modo como pensamos a liberdade condiciona o modo como nos vemos ou não livres.
O segundo pressuposto a ter em conta diz respeito às dimensões que se envolvem no agir humano. Toda a ação humana só é humana na medida em que nela participar a razão, o afeto e a vontade. A razão conhece; o afeto sente; a vontade quer.
O terceiro pressuposto consiste na verificação de que nenhuma liberdade é sumamente individual. Toda a liberdade nasce dos e com os outros. Nenhum de nós - a psicologia demonstra-o e a teologia reforça-o - adquire consciência de si sem a participação e o envolvimento dos outros (dos pais, dos familiares, dos educadores, etc.)
Ora, invocando o primeiro pressuposto, é fundamental que a nossa conceção de liberdade seja adequada e real, de modo a que não esbarre contra o muro do irrealismo que a torne inumana. Sendo assim, importa ter em conta que toda a definição de liberdade humana deve ter em conta que ela não é possível fora de condições. Isto é, toda a liberdade humana é condicionada. Toda! Sem exceção. Pressupor liberdade sem condições é falar de algo que não é humano. Sendo assim, faz parte da definição do que seja a liberdade o facto de estarmos condicionados, pelo que é errada toda a conceção de liberdade que pressuponha o incondicionamento. Ser livre, em termos humanos, é, assim, algo que se realiza em circunstâncias concretas. Já o dizia Ortega Y Gasset: «Eu sou eu e a minha circunstância».
Mais ainda.
A liberdade concebida como possibilidade indeterminada, sem limites, é, à luz do anterior pressuposto, uma falsidade. O mesmo é dizer que defini-la como a possibilidade indeterminada de escolher é errar na definição. Então, terá de se substituir esta definição por uma outra que sirva os nossos pressupostos. Essoutra definição deverá ter em conta que a realização da liberdade não pode, de modo algum, conduzir à sua própria destruição. Liberdade humana que elimina o humano tem algo de contraditório. 
É, aliás, a esta luz que é fácil concluir que, por exemplo, o ato de suicídio não pode ser definido como um ato livre. Pelo contrário. Se olharmos para o segundo pressuposto que acima recordávamos, veremos que o suicídio poderia ser definido como um ato de vontade, mas não como um ato de liberdade. A vontade pode ter querido realizar esse ato, mas a liberdade, que terá de envolver todas as dimensões acima enunciadas, este ausente dessa decisão. A vontade quis, mas não participaram da deliberação, nem a razão, nem o afeto. Do mesmo modo, a análise, recorrendo ao terceiro pressuposto, concluirá, facilmente, que a decisão do suicídio é individual, mas não é livre, na medida em que supõe a ausência dos outros e não os integra na decisão.
Toda esta reflexão é de fácil transposição para a discussão sobre a eutanásia.
O pressuposto de quem defende a eutanásia é o de que seja livre a deliberação de terminar com a vida e que basta, para a concretização dessa decisão, envolvendo médicos e técnicos de saúde, apenas a verificação de que essa decisão resulta de um ato de vontade. Contudo, toda a experiência de contacto com quem se depara com a notícia de que a morte possa ser iminente comprova que quem diz querer morrer está a manifestar, sim, desejo de que o que lhe está a acontecer não acontecesse. E a resposta que deve ser dada não é a de acabar com a vida, mas sim a de conferir novo sentido ao que se vive, no pressuposto evidente de que, hoje, não há dores não tratáveis. Tratada a dor, deve ser abordado o sofrimento, que é um problema mais profundo, existencialmente falando. O sofrimento é da ordem do sentido da vida. Quem sofre precisa de que os demais se façam compassivos consigo, isto é, sofram consigo e apoiem na redescoberta de que, mesmo a vida vulnerável, frágil, continua a ser digna. Porque a dignidade não desaparece por se ter perdido a sensação de que se é digno. Ela é inerente à condição humana, por definição frágil. Um dos primeiros trabalhos, no contexto da fragilidade verificada na doença ou na velhice, é o de ajudar a recuperar a consciência de que se é digno, mesmo quando se está mais débil. Porque a dignidade não se perde quando emerge a vulnerabilidade. Pelo contrário. Numa perspetiva de sociedade, quando se está mais débil e vulnerável, maior é o desafio de a sociedade se envolver com o que a padece e sente, no sentido de o reconhecer como um de nós e um connosco.
Mas regressemos à interrogação sobre o erro de leitura de que enfermam os que pressupõem que a eutanásia deva ser admitida como um ato livre na medida em que corresponde a um ato de vontade.
Não é difícil recordar quantas situações do nosso quotidiano nos demonstram que nem sempre coincidem vontade e liberdade. Veja-se, a título de exemplo, duas situações.
É em nome da liberdade, como condição de possibilidade de realização pessoal, consciente de que não nos realizamos apenas individualmente, mas como membros de uma comunidade, que o Estado nos obriga a usar cinto de segurança. Ninguém senão nós estamos em perigo e, no entanto, o Estado, enquanto reconhece que temos o dever de nos proteger porque o que somos entrelaça-se com a vida dos demais, sanciona-nos se não o fizermos. Na mesma lógica, se alguém, que fez tentativa de suicídio, for transportado, por alguém, ao hospital, os técnicos de saúde têm o dever de tudo fazer para recuperarem a vida desse alguém que, afinal, pela sua ação voluntariosa (de vontade), estava a expressar parecer querer morrer. Contudo, por se saber que a vida prevalece sobre o ato de vontade e que nem sempre a ação da vontade é ação livre, a boa prática médica impõe que se cuide e, se possível, se cure aquela vida.
Ainda poderíamos recuperar um terceiro exemplo, bem mais estranho, mas que nos deve fazer pensar. Em 2001, a Alemanha foi surpreendida por uma história que obrigou a grande reflexão. Um homem tinha praticado canibalismo sobre outro a seu pedido. Em tribunal, o canibal alegara que tinha documentos que demonstravam que a sua ação tinha correspondido a um acordo entre os dois. Como decidir se se entendesse que, sendo uma decisão acordada entre dois adultos, devia ser respeitada, sem mais, como parecem alegar os que defendem a eutanásia?
Os tribunais vieram a condenar o perpetrador deste ato hediondo, alegando que a dignidade da vida se sobrepõe às decisões da vontade sobre ela, quando estas decisões redundam na sua desproteção e desrespeito.
Uma deliberação que deve ser tomada em conta, de novo, quando se parece querer regressar à discussão sobre a eutanásia. Digo «regressar», pois a matéria não é nova, bastando lembrar tantos e tantos casos semelhantes, ao longo do século XX. A eutanásia, como tantos erros que atentam contra o dever de respeito pela vida humana, sempre tentou justificar-se, em particular sob a capa de argumentos ditos modernos, mas que mais não são do que a deturpação do que deverá ser a modernidade: a defesa da autonomia respeitando a verdade da condição e da dignidade humana. De outro modo, a modernidade redundará num suicídio da própria humanidade.

sábado, janeiro 02, 2016

Compaixão não é indolência nem se opõe à justiça: supera-a!



Sempre que «regresso» de uma «batalha» pela defesa da vida mais frágil, deparo-me com uma genuína interrogação: como pôde a sociedade chegar a admitir o que de modo óbvio se devia reconhecer como inadmissível?
Como pôde, por exemplo, chegar-se à convicção de que abortar pudesse ser legítimo ao ponto de se pretender considerar como um direito? Ou que matar um idoso ou um doente em fase terminal pudesse ser tratado como se de um ato de generosidade se falasse? E chegar mesmo a considerar estas e outras decisões de tal modo que os que nelas não se reconhecem são tratados como retrógrados e facilmente ultrapassáveis pelo avançar dos tempos? Tudo reduzido, assim, a uma questão de posição mais ou menos progressista, mais ou menos vanguardista.
Será de reduzir tudo a um binómio tão simples? Julgo que não. Estou convencido de que muitos dos que se dispõem a admitir o inadmissível fazem-no convictos de que estarão do lado correto, contudo, é essa convicção que merece análise, por nascer de uma falsa certeza.
É recorrente, entre os que defendem o aborto ou a eutanásia, a afirmação de que a sua posição é a dos que se compadecem. Do seu lado - dizem - está a compaixão. Do lado dos outros, estaria, apenas, a frieza e a falta de compaixão.
Contudo, é curioso constatar que a realidade de que aqui falamos mostra um quadro bem distinto.
Aquele que, em nome da compaixão, elimina aqueloutro de quem diz «compadecer-se», apaga o sofredor, no mesmo momento e ato em que pretende apagar a dor que ele padece. Quando, afinal, pretendia eliminar a sua dor, eliminou-o a ele mesmo. Esse é o erro dos que, em nome deste tipo de compaixão, que não o é afinal, se propõem aceitar o inadmissível. O seu ato elimina alguém, mas afigura-se-lhes lícito porque aparenta ser um ato compassivo. Na verdade, o mal nunca se apresenta como tal. Que o digam as primeiras narrativas bíblicas ou algumas das histórias recolhidas das mais importantes obras da literatura mundial. O que dizer de Ulisses para quem a melodiosa voz das sereias mais não era do que sinónima do fim trágico da sua viagem de regresso a Ítaca? Ou de Dorian Gray para quem a beleza e juventude da vida custou a venda da alma ao demónio? O mal não se afigurava como tal: o mal sempre se afigurava sob a capa de um bem.
Já outra é a posição de quem se afirma defensor da vida de todos, mesmo quando a vida se apresenta marcada pelo sofrimento. Para estes, há que procurar eliminar ou diminuir a dor e o sofrimento, mas sabendo que uma é a causa do sofrimento outra é a vítima do sofrimento. Esta distinção gera a verdadeira compaixão. Compaixão que é, aqui, - fazendo justiça à sua própria etimologia - «sofrimento com o outro». Por oposição a uma compaixão que mais não é do que busca de eliminação da dor a todo o custo, mesmo com o custo da própria vida humana. Esta última ideia de compaixão mais não será do que uma espécie de «indolência», «não sofrimento», «não dor». Ela poderá, mesmo, configurar-se como uma negação da condição finita e frágil da humanidade, marcada, intrinsecamente, pela vulnerabilidade, pois o ser humano é um ser «ferido» (vulnus, em latim), sinal da pretensão de que possamos, como sibilinamente afirmava a serpente, no livro de génesis, ser como deuses e exercer todo o poder, mesmo o de matar, em nome da recusa da dor e do sofrimento.
Bem observava o Papa Bento XVI, na sua extraordinária encíclica «Caritas in Veritate», que o «amor supera a justiça, porque amar é dar, oferecer ao outro do que é meu; mas nunca existe sem a justiça» (CV 6), ideia que se compreende melhor se a cruzarmos com a afirmação de que «um Cristianismo de caridade sem verdade pode ser facilmente confundido com uma reserva de bons sentimentos, úteis para a convivência social, mas marginais» (CV4).
Conjugando as duas afirmações que aqui recuperamos, retém-se uma verdade fundamental: a compaixão não pode realizar-se contra o outro, contra um outro, quem-quer que ele seja. Veja-se, para melhor compreensão desta ideia, a atitude de Jesus para com a mulher adúltera. Jesus acolhe-a, como ninguém mais a acolheu, mas não deixou de afirmar, no final: vai e não voltes a pecar. Esta cena bíblica, que muitos têm utilizado para legitimar o inadmissível (muitos dizem-se defensores do aborto em nome da insuficiente interpretação desta cena evangélica!), evidencia-nos que a atitude compassiva de Jesus é para com a pessoa e não para com os seus atos. Os atos continuam a ser considerados errados. 'Vai e não voltes a pecar'. O que Jesus fez foi sofrer com (com+paixão) a mulher, mas não branquear ou legitimar a sua ação. E este é o desafio implícito nas afirmações de Bento XVI. A compaixão não legitima o que é injusto, mas sim, perante o cenário de máxima bondade, desafia à reposição da justiça e à criação de relações que superam a própria justiça. Mas esta não é eliminada pela compaixão. É-lhe pressuposta. Também o Papa Francisco recorda esta condição, na bula «o rosto da misericórdia» (MV): «a misericórdia não é contrária à justiça, mas exprime o comportamento de Deus para com o pecador, oferecendo-lhe uma nova possibilidade de se arrepender, converter e acreditar.» (MV 21).
Um tal enquadramento da compaixão deve suscitar um duplo movimento:
- o de acolhimento da verdade do que somos, que devemos respeitar e pressupor, sabendo que todo o ato que nos diga respeito deve assegurar e potenciar o que de humano há em nós, nunca aceitando que se desrespeite a dignidade de que somos portadores;
- o de reconhecimento de que, enquanto seres frágeis, vulneráveis, todos estamos irmanados nessa condição, o que deverá gerar em nós a atitude de sofrer com o outro, de assumir, com ele, a dor que ele padece porque a sua dor é a nossa dor, pois nela reconhecemo-nos igualmente frágeis. A compaixão é o outro nome da misericórdia, a atitude de quem possui um coração pobre e humilde. Contra toda a ilusão de que «seremos como deuses»!

Caminhada pela vida | Contra rótulos e preconceitos, os factos. Simplesmente, os factos

  Artigo originalmente publicado em https://diocese-aveiro.pt/cultura/ No dia 6 de abril, sábado, o país mobilizou-se para afirmar que a...