sexta-feira, março 25, 2016

A grande ilusão - Pode o homem ser livre sozinho?

Grandes ilusões geram grandes desilusões. Assim é na vida; assim é na ordem do pensamento.
Vivemos tempos reconhecidamente individualistas, marcados por um egocentrismo cultural que parece levar de vencida uma batalha em que todos somos, em simultâneo, adversários e leais defensores, num combate absurdo, em que parecemos querer insurgir-nos ao mesmo tempo que nos rendemos como se a derrota nos fosse favorável. Queixamo-nos dele, mas vivemos dele, como se não pudéssemos dispensá-lo.
Este paradoxo da nossa sociedade contemporânea, a que já chamaram pós-moderna, hipermoderna, mas também anti moderna e, mesmo, época de crise, sem identidade nem definição, merece análise. Seja o que for que chamemos à nossa época, será difícil escapar ao reconhecimento de que se configura como um tempo de afirmação da autonomia entendida de forma solipsista [o indivíduo encerrado em si mesmo]: definimo-nos por oposição aos outros. Representa muito bem esta definição um propalado adágio que sustenta que «a minha liberdade acaba onde começa a do outro». Uma frase que, de tantas vezes repetida, se torna uma verdade em que pouco se reflete. Nela se concentra, porém, a visão que, de facto, se foi consolidando do que seja a liberdade: um exercício meramente individual em que os outros são um estorvo. Uma tal definição nasce, porém, de um tremendo erro. O erro em que parece gravitar uma certa linha de entendimento do que seja a modernidade.
Para nos entendermos, consideremos a modernidade como a era iniciada no século XV (é usualmente atribuído à queda de Constantinopla, em 1453, o estatuto de marco definidor do fim da idade média e início da moderna), que se afirma pelos valores da autonomia, pela ideia do progresso e pela importância do futuro. A modernidade vincula-se à ideia de afirmação do humano diante de tudo o que pudesse limitá-lo. Tal ideia, por si, positiva, contribuiu, porém, para a gestação de um conceito de liberdade como afirmação da identidade por oposição a outros, favorecendo a convicção de que o processo de libertação seja um dinamismo meramente individual, em que tanto mais se será quanto mais se afastar da relação com os demais. Neste quadro, apareceram movimentos fortíssimos que vincularam a modernidade a esta compreensão, influenciando, de modo decisivo, o pensamento ocidental, particularmente a partir do século XVIII (com nomes como Rousseau, Hobbes, Locke e tantos outros que ainda hoje continuam a chegar-nos, por exemplo, através de certas conceções pedagógicas), e cuja marca continua a sentir-se, talvez mais forte do que nunca, afirmando que antes da comunidade está o indivíduo. Mais ainda, sustentando que o ser humano só será na medida em que se afirmar como indivíduo, na sua solidão. Todo o pensamento liberal (nas suas mais diversas manifestações: da política à economia, da moral à própria teologia) tem a sua génese neste processo.
Como observa, porém, um dos grandes gurus desta visão da sociedade, no final do século XX, Francis Fukuyama, há aqui uma espécie de pecado original de que importa tomarmos consciência para começar a inverter este processo que não poderá senão conduzir a sociedade ao seu próprio fim, pois uma tal visão faz da sociedade uma mera soma de indivíduos.
Fukuyama recorda, num dos seus mais recentes livros - «as origens da ordem política»-, que Rousseau, Hobbes e Locke estão entre os mais influentes preconizadores desta visão. Ora, continua Fukuyama, «qualquer um dos três pensadores considerou os seres humanos no estado de natureza enquanto indivíduos isolados, para os quais a sociedade não era natural. […] a sociedade humana surge apenas com a passagem do tempo e envolve cedências ao nível da liberdade natural.» Fukuyama vem a reconhecer, no referido livro, que, por oposição a estes, muitos séculos antes, «Aristóteles estava mais correto do que estes teóricos liberais dos primórdios da modernidade, quando afirmava que os seres humanos são políticos por natureza».
Tais afirmações devem levar-nos a reconhecer que o que nos define não pode ser uma certa ideia de liberdade em que os outros são um estorvo, mas uma ideia de liberdade em que a nossa realização só pode ocorrer porque nela e com ela também os outros se realizam. Melhor seria, assim, dizer que a nossa liberdade só aumenta na medida em que fizer aumentar a liberdade dos outros e diminuirá na medida em que fizer diminuir a dos demais.
A grande ilusão da modernidade – aliás, de uma certa modernidade! – foi admitir que alguém pudesse tornar-se mais humano sem os outros. Tal ilusão não poderia senão gerar enorme desilusão, pois parte de pressupostos errados, pressupostos sobre o que seja o ser humano que nada têm a ver com a real natureza humana. O homem só se torna humano na medida em que os outros suscitam nele a humanidade que está em potência. Tal reconhecimento faz de nós um-ser-para-os-outros e um-ser-com-os-outros. Tudo o que seja negação disto será negação do humano na sua própria definição.
E veja-se como tal pode permitir compreender como decisões que pressupõem um humano fechado sobre si mesmo, autocompreendido, são decisões suicidas e «geradoras» de morte. No contexto português atual, em que se discute a possibilidade da legalização da eutanásia, este é o erro de tal aceitação, na sua origem. Muitos, que defendem a eutanásia como se ela fosse uma espécie de suicídio perpetrado por outro, erram, precisamente, por pressuporem que o suicídio fosse um ato meramente individual. Nada mais errado, sendo que a eutanásia não é um suicídio, mas um ato perpetrado por alguém a quem caberia cuidar a pretexto da compaixão.
Como recorda a psiquiatra, Alexandrina Meleiro, na Revista Brasileira de Medicina (Set 2013) recuperando afirmações formuladas pelo filho de um suicida, «quando uma pessoa se mata, não se mata só a si mesma. Mata todos ao seu redor. Mata todos os que a amam. Condena todos os outros para sempre. O suicídio amaldiçoa os seus parentes e amigos para sempre. A pessoa que se mata condena e prende todos os outros.»

Importa superar a ilusão, para não redundar numa desilusão. E a sua superação só poderá ocorrer olhando, de frente, o humano real que somos, aceitando-o como é, nos seus limites, porque a fragilidade, a vulnerabilidade, fazem parte da sua identidade; são, aliás, a condição que nos torna recetivos aos outros e, por isso, afinal, capazes de ser afetados (o que os afetos demonstram!) por eles e, com eles, construir a identidade que somos que, enfim, é um nó de identidades em confluência. Nós somos pelos outros. Os outros são-no por nós. E isto não gera desilusão: realiza-nos!

sexta-feira, março 04, 2016

A crise de valores denuncia a crise do homem sábio

Nenhuma ação humana pode realizar-se sem ser movida por algum valor. Todo o homem que age (e até quando decide não agir) fá-lo em nome (consciente ou inconscientemente) de valores. Neste contexto, a amoralidade é uma possibilidade meramente abstrata. Assim, quando se fala de crise de valores, do que se está a falar é de uma inversão ou, mesmo, perversão da hierarquia dos valores. Aqueles que deveriam ser os valores prioritários são secundarizados, em nome de outros que, de segundos, passam a primeiros. Este é o enquadramento que permite, por exemplo, no contexto português, analisar como foi decidida a adoção de leis sobre o aborto ou como está a ser discutida a possibilidade de legalizar a eutanásia. Em ambas as discussões, os decisores políticos deixaram prevalecer valores secundários em relação a valores mais fundamentais e estruturantes.
À luz deste enquadramento, valerá a pena recuperar a ideia de que esta crise de valores tem uma outra crise latente, sobre a qual vale a pena refletir.
É que a inversão dá-se concedendo prioridade a valores mais imediatos em relação a outros que, por serem mais radicais, exigem que se reflita sobre eles e sobre a sua importância. E tal exige prescindir de seguir as emoções momentâneas para dar tempo ao raciocínio e à reflexão. E aí nasce o problema.
Na realidade, os grandes nomes da reflexão detida e serena, entre os quais poderemos invocar a autoridade dos Papas mais recentes (Bento XVI deu particular importância a esta matéria), mas também outros de quadrantes diferentes (Giovanni Sartori, Gilles Lipovetsky, Alain de Botton) vêm dizendo que vivemos uma crise que atinge o âmago do que nos define como homo sapiens. A nossa evolução distintiva fez de nós seres que souberam transcender as emoções, os instintos, em nome da razão e da reflexão cuidada e tranquila e, por isso, distante da intensidade dos acontecimentos. Esse é o papel que se espera, aliás, do direito e da justiça: conferir distância crítica para ajuizar bem. E «bem» é dando prevalência aos valores fundamentais em relação aos secundários.
Mas retomemos o fio do raciocínio. Para tal, recuperemos dados da reflexão de Giovanni Sartori que afirma que, se deixássemos alguém ser educado pela televisão ou pelos meios de comunicação social, essa pessoa seria incapaz de pensar com lógica, perderia, por isso, a dimensão de «sapiens», substituindo-a pela dimensão do «ver». O homo sapiens cederia o lugar ao «homo videns». Outros, ainda, na linha de Huizinga, reduzem o homem à dimensão do divertimento, designando-o como «homo ludens», o homem que joga, que se diverte. É, aliás, neste registo que Gilles Lipovetsky analisa esta fase da história em que estamos e a considera como «hipermoderna», uma era de deceção, em que nos distraímos para ocultar a interrogação sobre a vida. Esta hipermodernidade cria seres que desistem de viver a sua vida e se divertem a imitar idades que já não têm. Chama a estes indivíduos adultos, que se distraem sendo adolescentes, os «adultescentes». O que há de comum a todos estes retratos é algo inquietante. Estamos num tempo que desistiu de parar para pensar e interrogar-se sobre o sentido das suas ações, das suas decisões, enfim, da sua vida! É, aliás, este o desafio fundamental da ação e missão da Igreja, hoje. A Igreja tem respostas, a Igreja tem uma proposta de salvação para a humanidade; contudo, vale a pena saber se a humanidade se sabe perdida! Ter respostas quando não há perguntas cria um diálogo surdo. O grande repto é, sem dúvida, suscitar a interrogação, fazê-la emergir, pôr a pensar sobre a vida, e não dar como certo que o que muitos dizem ser aceitável corresponderá ao que é verdadeiro e certo. É de justiça, neste contexto, recuperar as sábias palavras do sempre oportuno Chesterton, no seu livro «Ortodoxia»: «Um homem deve ter dúvidas sobre si mesmo, mas não deve ter dúvidas sobre a verdade; ora, o que se passa hoje é exatamente o inverso» E este era um retrato do que se passava no início do século XX. Mas os gérmenes já lá estavam. Hoje, a convicção de que já não valerá a pena continuar a procurar a verdade gerou a certeza de que ela não existe. E, com a morte da verdade, a ética fica moribunda.
É curioso, por isso, constatar que, hoje, poucos terão feito tanto pela verdade e pela ética como a Igreja, ainda que muitos a pretendam acantonar num preconceito de obscurantismo e irracionalidade. O já referido Chesterton, agora pela boca de uma das personagens das suas obras de ficção policial, o Padre Brown, reconhecia exatamente o mesmo: «eu sei que as pessoas acusam a Igreja de diminuir a razão, mas o que sucede é o inverso. Na Terra, somente a Igreja atribui verdadeira supremacia à razão. Na Terra, somente a Igreja afirma que o próprio Deus está sujeito à razão.» E assim é, com efeito. É bom lembrar que nunca a Igreja cedeu ao nominalismo ou à visão arbitrária sobre as decisões divinas. A Igreja nunca subscreveu, por exemplo, as abordagens predestinacionistas, que defendiam que nada nos podia permitir saber qual o caminho da salvação.
E hoje, mais do que nunca, é necessário reconhecer que, sem o respeito pela verdade, pela busca insaciável do que ‘é’ e ‘deve ser’, geram-se as condições para a arbitrariedade que fará regredir o homem ao antes de si. «As pessoas que começam a lutar contra a Igreja em nome da liberdade e da humanidade acabam por combater a liberdade e a humanidade para poderem lutar contra a Igreja». Chesterton, de novo!
Neste retrato, fica evidente que a crise de valores expressa uma latente crise de verdade, de lógica, de pensamento, de razão e de lucidez. Como sempre, desde a sua origem, espera-se da Igreja, hoje, que continue a salvar a humanidade. E salvá-la, hoje, é continuar a exigir-lhe que reflita e que não decida sem refletir. Porque «sem verdade, cai-se numa visão empirista e cética da vida, incapaz de se elevar acima da ação porque não está interessada em identificar os valores — às vezes nem sequer os significados — pelos quais julgá-la e orientá-la.» (Bento XVI, Caritas in Veritate 9). A verdade é esse horizonte que permite discernir e interpretar os sinais dos tempos. De outro modo, como reconhecia o estoico latino Séneca, não haverá ventos favoráveis por andarmos sem destino. Pois, se andarmos e persistirmos no erro, sem com tal nos inquietarmos, andaremos errantes! Errar far-nos-á errantes! 

Caminhada pela vida | Contra rótulos e preconceitos, os factos. Simplesmente, os factos

  Artigo originalmente publicado em https://diocese-aveiro.pt/cultura/ No dia 6 de abril, sábado, o país mobilizou-se para afirmar que a...