quarta-feira, maio 11, 2016

Sobre os contratos de associação: sim, a sua defesa é uma questão de justiça!

Começo por fazer uma declaração de interesses: mesmo contra o meu interesse individual, sou a favor daquilo que os contratos de associação, na educação, defendem. Pelo facto de ser professor numa escola pública de iniciativa estatal, não perdi a noção do que está em causa e, como sempre me pautei pela verdade e fidelidade aos valores que considero fundamentais, não é porque eu possa ser afetado nos meus interesses individuais que deixarei de os defender.

Quem existe primeiro: o Estado ou a sociedade? O que fica em causa com o fim dos contratos de associação?
O que está em causa não é, nem pode ser, só uma questão de gestão dos recursos financeiros. Se assim for, o Estado social morreu! É, aliás, o que está em causa em alguns Estados americanos em que se discute, por exemplo, se faz sentido financiar, publicamente, doenças que foram contraídas por motivo de comportamentos tidos por quem as padece (por ter fumado, por ter conduzido com excesso de velocidade, etc…). O raciocínio não pode ser reduzido à mera discussão de cifrões, quando em causa está a justiça e uma liberdade tão fundamental como a de educar. Para mais, esta discussão tem mostrado todo o tipo de números: uns demonstram que a escola pública de iniciativa estatal é mais cara, outros que é mais barata… Bem parece que os estudos e resultados são feitos à medida de quem os solicita!
O caráter pantanoso desta motivação obriga a ir ao que é fundamental. E o que é fundamental é o que nos dizem a Constituição e a lei de bases do sistema educativo, ambas fazendo decorrer o que aqui está em discussão de um princípio que tem estado esquecido: o princípio que afirma que o Estado é subsidiário da sociedade. O Estado existe porque existe a sociedade e não o contrário. O Estado deve ser garante da justiça e da equidade e não o destruidor da sociedade porque a pretende absorver e substituir. É bom que se afirme, aliás, que nem a iniciativa estatal nem a iniciativa privada são, só por si, garantia de justiça. A justiça está-lhes acima: ambas são um meio para a sua realização, pelo que nunca se devem absolutizar. O que torna boa uma resposta não é o facto de ser de iniciativa do Estado ou de ser de iniciativa privada, mas sim se respeita a justiça e a equidade, o bem comum e a integralidade da pessoa.

Quem é o primeiro responsável pela educação das crianças: o Estado ou os pais?
Mas regressemos à enunciação do princípio acima invocado. Tal princípio, designado como «subsidiariedade», afirma que «quando uma instância mais próxima consegue assegurar a resposta a um problema, de forma justa, não deve ser a superior a assegurá-la». Na constituição, este princípio, em matéria de educação, é garantido, entre outros, no artigo 67º, em que se afirma que ao Estado incumbe «c) Cooperar com os pais na educação dos filhos», o que significa reconhecer-lhes, aos pais, o papel original e ao Estado o subsidiário em relação aos pais em matéria de educação. Este princípio é repercutido na lei de bases do sistema educativo, em que se afirma, no artigo 57º, que «é reconhecido pelo Estado o valor do ensino particular e cooperativo como uma expressão concreta da liberdade de aprender e ensinar e do direito da família a orientar a educação dos filhos». Tal definição de motivos afasta o caráter provisório da possibilidade de uma rede pública com iniciativa estatal e particular. Não é por razões conjunturais, mas sim fundamentais, que existe rede pública com iniciativa estatal e particular, sendo que quem opta, gozando a liberdade constitucional, por uma escola pública de iniciativa particular, não deve ser avaliado como estando a ter um privilégio, mas sim como usufruindo de um direito que deve ver respeitado. É, aliás, muito estranho o raciocínio dos que defendem que quem escolhe uma escola pública de iniciativa particular não deve ver garantido o seu direito só pela razão de estar a fazer uma determinada escolha ou opção bem definida, como se, por esse motivo, tivesse, necessariamente, de pagar a sua escolha. Como se escolher fosse sempre um privilégio e não correspondesse a um direito! Seria curioso aplicar este raciocínio a quem o defende: defenderia, por exemplo, que, por alguém ser eleito por um determinado partido, só pelo facto de ser de um partido identificado, o seu vencimento fosse pago pelo partido por que foi eleito? Ou que, por se ser representante de um sindicato determinado, se tivesse de ser remunerado por ele? Em nenhum destes casos se pretende aplicar o raciocínio que se utiliza quando em causa estão as escolhas dos outros. O direito constitucional de escolher o modelo de educação que se pretende tem de ser salvaguardado. E o melhor modo tem sido, de facto, através dos contratos de associação. Este tem sido o instrumento que tem permitido que todos, ricos e pobres, beneficiem do serviço público que lhes é prestado, mesmo que em instituições de iniciativa particular. Ora, o que deveria discutir-se é se a justiça e o acesso de todos está garantido e em que condições e não pôr em causa a sua possibilidade como se na iniciativa estatal se esgotasse a oferta pública. Se tal afirmação fosse verdadeira, nesta como noutras áreas, então teríamos de concluir que só um modelo coletivista de Estado seria justo e equitativo. O público reduzir-se-ia ao que é de iniciativa estatal. Nada caberia no estatuto de serviço público senão isso. E o que seria de todas as entidades coletivas de utilidade pública, tantas delas de iniciativa particular e que têm mantido de pé esta nação quando tudo o mais desaba?
Será essa a ideia de Estado que se quer preconizar? Será essa a ideia de equidade que se pretende defender?

O ensino público de educação só deve ser prestado por instituições de iniciativa estatal?
E o que dizer de tudo o que agora se discute, quando se constata que do que estamos a falar é de apenas 1% de todos os estabelecimentos de educação do país, quando, comparando com casos como a Holanda, concluímos que, aí, entre 70% a 80% dos estabelecimentos públicos são de iniciativa particular, num regime semelhante ao dos contratos de associação?
Para quem possa interpretar esta posição como motivada por qualquer intuito que não o da simples defesa dos valores aqui evidenciados, socorro-me do que ouvi, de viva voz, em 2010, no Fórum «Pensar a Escola, Preparar o Futuro», ao insuspeito professor Guilherme d’Oliveira Martins, então presidente do Tribunal de Contas e ex-ministro da Educação de um governo do Eng. António Guterres: «As redes têm de buscar e encontrar tudo o que seja criador, construtivo, tudo o que tenha a capacidade de fazer crescer e desenvolver. Por isso, ao falar de redes de serviço público de educação, temos de referir as várias componentes, as várias iniciativas – social, privada e estatal. Todas essas iniciativas têm que se complementar, nenhuma pode ser desperdiçada, e a liberdade de ensinar e aprender é algo que tem de ser profundamente assumido em todas as suas consequências […] devendo a lógica de rede contrapor-se ao centralismo e à orgânica hierarquizada. Se bem repararem, a maior parte das vezes encontramos um consenso discursivo sobre a liberdade, mas depois há uma grande dificuldade prática em cumprir, há uma grande distância entre o que se diz e o que se faz.» Estas não são palavras minhas. São do Professor Guilherme d’Oliveira Martins e podem ser lidas, na íntegra, na revista que recolheu as conferências proferidas no fórum acima referido, promovido na Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa. (Conferir Revista Pastoral Catequética 23, 2012, p. 72-73). A revista é de 2012, mas reproduz conferências de 2010.
O professor Guilherme d’Oliveira Martins vai ainda mais longe, concretizando estes pressupostos e recordando que «em Portugal tivemos uma experiência extraordinária, que foi a criação da rede de educação pré-escolar. Uma vez que se tratou da criação de uma rede nova, tivemos um enorme sucesso, porque foi possível envolver à partida as várias iniciativas. Só isso garantiu esse sucesso e não foi feito aquilo que tradicionalmente se faz, que é construir de cima para baixo o sistema e ter a ideia de que o Estado vai fazer tudo.» (p. 73) A rematar a sua conferência, o ex-ministro sublinha que «o serviço público de educação assenta, pois, na ideia democrática do pluralismo, na ideia de que as diferenças e que o reconhecimento das diferenças é fundamental para assegurar que a liberdade seja igual e que a igualdade seja livre [pois] ao falarmos de serviço público de educação, estamos a referir o serviço das pessoas, pelas pessoas e para as pessoas.» (p.74)

Já não é de hoje o objetivo de acabar com o pluralismo na educação…
Há, na forma como se está a denunciar os contratos de associação, muita ideologia em jogo e muita falta de transparência. E não se pense que estou a sustentar o enriquecimento de grandes grupos com a educação. Isso não faz parte dos meus interesses nem das minhas motivações. Estou, sim, a recordar-me da história do nosso país que, sempre que eliminou a diversidade de escolhas, na educação, conduziu o país ao naufrágio. Disso, o melhor exemplo é o do Marquês de Pombal que, como bem recorda Jorge Buescu, no seu ensaio «Matemática em Portugal: uma questão de educação», extinguiu o ensino ministrado pelos jesuítas, conduzindo o país a um descalabro que durou 150 anos (cfr. P. 61). Henrique Leitão, Prémio Pessoa em 2014, faculta argumentos para fundamentar esta afirmação, no programa Visita Guiada de 10 de novembro de 2014, dedicado à forma como o Marquês de Pombal criou a ideia falsa de que os jesuítas eram contra a ciência, ideia que lhe criou as condições para orquestrar a sua expulsão de Portugal, com graves custos para a cultura científica no país.
O momento exige frescura de espírito, coragem para olhar para os valores que estão em causa e distância para abordar a matéria sem ideologias, nem liberais, nem estatizantes. O que deve estar em causa não deve ser quem tem os interesses mais poderosos, mas a defesa de um direito a escolher como quero educar os meus filhos. E esse deve ser um direito insofismável e não apenas reservado a quem tem condições financeiras para o exercer. Os contratos de associação têm sido o melhor instrumento para o assegurar.

quarta-feira, maio 04, 2016

Estará o mundo com amnésia?

O nosso tempo tem andado muito esquecido. Esquece-se com facilidade! Anula a memória de si e a memória que o possa incomodar. E isso significa faltar à verdade. Que o diga a ideia grega sobre o que é a verdade.
Para os gregos, «verdade» dizia-se com palavras como «ousía» («a verdade do ser»), «orthót(ê)s» («retidão, coerência»), mas também «alêtheia». Vale a pena determo-nos nesta última palavra, que nos servirá de guia para esta reflexão.
«Alêtheia» – «verdade» - compunha-se de «lêtheia» precedido de um prefixo de negação, «a». Ora, «lêtheia» tem origem em «lêthos» que quer dizer «esquecimento», «ocultação». Ser verdadeiro era, a esta luz, «não se esquecer», «não ocultar», poderíamos dizer «revelar». É curioso, aliás, que um dos rios que os gregos diziam existir no Hades (Inferno), segundo a cosmologia helénica, tivesse o nome de «Letes». Diziam os gregos que os mortos que bebessem das suas águas esqueciam toda a sua vida passada, pois o Hades era o lugar do esquecimento… O que fazia do Inferno, numa interpretação ampla, o lugar da mentira, da anulação, da perda da identidade. Hoje, alguns teólogos recuperam algo desta abordagem, ao falar do Inferno como uma possibilidade real de total anulação da identidade e da pessoa.
Servem estas reflexões de prisma de análise da sociedade em que nos movemos. Sociedade em que a verdade parece distante das decisões e das ações de quem nela se situa. Desde os Panama Papers aos sucessivos esquecimentos de quem fez falir banco após banco, passando pelo doping no desporto até à mentira na prestação de provas em exames de acesso à universidade, ou, ainda, à manipulação de dados sobre as emissões de gases poluentes pelos veículos automóveis, a falta de verdade parece grassar como uma amnésia coletiva.
O rio Letes parece ter desaguado bem perto de nós e os vivos decidiram brindar com as suas fascinantes águas.
E repare-se como pensar a verdade como o «não esquecimento» ajuda a compreender de um outro modo a importância de não esconder as nossas origens ou a nossa memória. Recuperar a memória é um outro modo de respeitar a verdade, característica que este tempo, designado por Lipovetsky como hipermoderno, parece querer arredar e afastar com eficácia. Vivemos num tempo sem memória. Nem memória de passado, nem memória de futuro. Uma alimenta-se, aliás, da outra. Não há sentido do amanhã se não se sabe de onde se provém e que identidade se possui.
Discutir o problema da verdade pode, ainda, encontrar na cultura clássica, uma outra genuína dualidade que é aqui muito oportuna. A dualidade referida por Parménides, um filósofo do século V a.C., para quem havia que distinguir entre o ser, do âmbito da verdade, e o parecer, do âmbito da ilusão e do não-ser. Não deixa, à luz desta síntese muito sumária, de ser relevante verificar como vivemos num tempo que se satisfaz com a ilusão, estando, permanentemente, na fronteira do não-ser, da mentira. Vivemos, muitas vezes, à medida que, a conta-gotas, nos fazem sair as notícias sobre novos «esquecimentos», a sensação de estar num lugar de espelhos em que não sabemos o que é verdade e o que é ilusão.
Contudo, mesmo que nos queiram fazer crer que o «crime compensa», as lições recentes da história mostram-nos que até essa convicção é ilusão. A verdade pode demorar a emergir, mas é bom lembrar que a eficácia da água do Letes é efémera e temporária, porque vã. Na verdade, o Hades já foi vencido e Aquele que tem a chave dessa vitória chama-se «Verdade».

Mesmo numa comezinha leitura de curta distância, é fácil verificar que o fim dos que cederam à sedução de beber das águas do rio do Hades não foi honroso nem de saudável memória. Convirá, talvez, esquecê-lo… ou será melhor lembrá-lo para sempre?

Caminhada pela vida | Contra rótulos e preconceitos, os factos. Simplesmente, os factos

  Artigo originalmente publicado em https://diocese-aveiro.pt/cultura/ No dia 6 de abril, sábado, o país mobilizou-se para afirmar que a...