sábado, agosto 27, 2016

Eutanásia, aborto e outras debilidades… A vertigem sedutora

A história tende a repetir-se e, com ela, os erros já outrora cometidos e as lições entretanto esquecidas. Constatar isto não deveria sossegar-nos nem aquietar-nos ao reconhecimento de que é assim e não poderia ser de outra maneira. E ficarmo-nos por um encolher de ombros e um menear de cabeça, seguidos de um descontraído traulitar indiferente.
Quem tem memória (seja do passado, seja de futuro) não pode deixar de olhar com uma incrível sensação de «déjà-vu» para o percurso que estamos a fazer em direção à legalização da eutanásia. O mesmo caminho que nos levou à legalização do aborto, e, mais para trás, à aceitação argumentada da eliminação dos «débeis mentais». A legalização do aborto é mais recente; a dos «débeis mentais» é mais longínqua e, por isso, menos presente na memória coletiva. Dela já só nos resta a imagem das atrocidades cometidas em plena Segunda Guerra Mundial, às mãos dos que se consideravam herdeiros da grande cultura alemã. E olhamos com repulsa para o que ali foi cometido. Esquecemos, porém, porque convém esquecê-lo, como se pôde chegar ali.
É pouco sabido quão entranhado estava o eugenismo na sociedade europeia, antes da Segunda Guerra Mundial. O seu estudo ajudaria, seguramente, a ter muito mais prudência na aceitação, sob que argumento for, de todo e qualquer atentado contra a dignidade da vida humana.
Entenda-se por eugenismo, para facilitar e não nos alongarmos em definições, a defesa de que seja legítimo, em nome da melhoria da genética humana, criar incentivo à procriação dos que têm «bons genes» e entraves à disseminação dos «maus genes». Esta formulação parece inócua e sem perigos. Se pensarmos, porém, que tal exercício terá de implicar considerar uns como dignos de procriar e outros como indignos de tal, talvez a situação já se nos afigure menos legítima e logo nos ressuscite os fantasmas do nazismo. E é bom que o faça, mas sem esquecermos que o nazismo levou a uma dimensão exponencial aquilo que fora ganhando lastro em parte significativa da sociedade europeia.
Teremos de recuar a 1885, como recorda Matt Ridley, no seu livro «Genoma: autobiografia de uma espécie em 23 capítulos» (Gradiva, 2001), onde se narra, com detalhe, a história negra desta fase da cultura ocidental, para encontrar o autor do termo «eugenia». Deve-se a Francis Galton, um primo de C. Darwin (o autor de «a origem das espécies», preconizadora do evolucionismo), a criação deste termo com que ele pretendia defender uma ideia que Ridley enuncia de forma muito lapidar: «deixem-nos melhorar a linhagem da nossa espécie, tal como melhoramos a linhagem das outras. Deixem-nos reproduzir os melhores, e não os piores, espécimes da humanidade» (Ridley, p. 298) Esta começou por ser uma ideia meramente científica, mas que, rapidamente, começou a ganhar foros de ideia política e social. Em nome de uma intenção que parecia justificar-se a si mesma (reduzir a existência de genes perturbadores do desenvolvimento humano) e de uma possibilidade que a ciência parecia assegurar, a ideia foi ganhando adeptos, muito antes de Hitler operacionalizar em larga escala uma intenção que parecia ingénua. No período que vai de final do século XIX até à Segunda Guerra Mundial, poucos países conseguiram resistir à vertigem eugenística, introduzindo, nos seus quadros legais, medidas que previam o impedimento de casamento a pessoas que eram consideradas suscetíveis de transmitir genes indesejados ou medidas ainda mais agressivas. Em 1911, seis Estados norte-americanos previam a esterilização forçada dos que eram considerados mentalmente incapazes. Em 1917, já eram 15 os Estados norte-americanos com leis deste teor e, em 1931, chegavam a 30. Em 1924, os Estados Unidos aprovaram uma lei da imigração (Immigration Restriction Act) que limitava a entrada de imigrantes provindos do sul ou leste da Europa, sob pretexto de serem «biologicamente inferiores». Com base em leis aprovadas no período entre 1910 e 1935, mais de 100000 pessoas foram esterilizadas sem a sua autorização (Ridley, 300). E não se pense que a matéria se confinou ao contexto americano. Países tantas vezes apontados como modelo de modernidade e progresso como o Canadá, Suécia, Noruega, Finlândia, Islândia, incluíram leis eugénicas nos seus quadros jurídicos. Só a Suécia, com lei de 1934, esterilizou mais de 60000 pessoas sem a sua autorização (Ridley 300). Como bem recorda o mesmo autor a quem devemos estas informações, o auge desta vertigem demolidora encontramo-lo no regime nazi que «esterilizou 400000 pessoas e, depois, assassinou muitas delas. Na Segunda Guerra Mundial, em apenas 18 meses, 70000 doentes psiquiátricos alemães já esterilizados foram gaseados apenas para libertar camas de hospital para os soldados feridos». (Ridley 300-301).
E a surpresa de quem acompanha este avolumar de informação não termina se nos decidirmos a enunciar alguns dos nomes dos preconizadores destas medidas. Encontraremos entre eles figuras destacadas que, seguramente, após a guerra, teriam de rever a sua posição. Destaco os nomes de Keynes, economista de renome, George Shaw, escritor de origem irlandesa, e W. Churchill, que, em 1910, escreveu uma carta ao então primeiro-ministro britânico, defendendo legislação eugénica para que «a maldição dos doentes mentais morresse com eles» (Ridley 304). A Segunda Guerra Mundial e as atrocidades cometidas a pretexto de princípios eugénicos mostraram quão errado era o raciocínio. Mas com que custos e tão tardiamente!
O assombro que estas informações nos devem provocar não pode senão acordar-nos. Como recorda o mesmo Ridley, muito poucos países resistiram a esta vertigem sedutora, no período que antecedeu a Segunda Guerra. Entre eles, a resistência mais acentuada encontrou-se nos países de matriz católica. O reconhecimento da dignidade inviolável da vida humana tinha raízes e revelava que este «canto da sereia» não podia estar certo.
Invocar para aqui o «canto da sereia» obriga-nos a recordar a cena da Odisseia, de Homero, que nos conta, no canto XII, a saga de Ulisses que, regressando da batalha de Tróia para a sua cidade de Ítaca, tem de passar pela ilha das sereias, as mulheres-pássaro cujo canto melodioso, se ouvido, seduz até à morte. Ulisses, para poder prosseguir viagem, sela os ouvidos dos companheiros, com cera, para que não possam ouvir o canto melodioso que seduz e, querendo ser o único a ouvir tal canto, pede aos companheiros que o prendam, com firmeza, ao mastro da nau. Mesmo quando, ao ser seduzido, pede aos companheiros, com um franzir de sobrolho, que o libertem, o que consegue é que os companheiros ainda apertem mais o laço que o prende ao mastro.
É preciso que alguém nos prenda ao mastro. As sereias têm seduzido e levam-nos à morte. Ítaca não é, porém, aqui.
Quem tem ouvidos para ouvir ouça…


domingo, agosto 07, 2016

Recensão

 António MARUJO - A lista do Padre Carreira. Amadora: Vogais, 2016, 205 pp.
O livro que é um filme!


1994 é um marco na minha vida e tê-lo-á sido, certamente, na vida de muitos amantes do cinema, mas, também, da História. Recordo-me de, nesse ano, ter visto, na tela do cineteatro ‘avenida’, em Coimbra, o filme «a lista de Schindler», de Steven Spielberg. Guardo na memória o silêncio com que o público ouviu, até ao último acorde, a envolvente melodia, genialmente tocada ao violino por Itzhak Perlman, que acompanha o fim deste filme que passa de preto e branco a cores, quando os sobreviventes salvos por Schindler depositam uma pedra sobre o seu túmulo.
Até então, desconhecia quem era Oskar Schindler e, sequer, Aristides de Sousa Mendes, Sampaio Garrido, Brito Mendes ou Padre Carreira. Foi pela mão do cinema que o mundo conheceu o nome daquele empresário checo que salvou mais de mil judeus das garras do nazismo.
O tempo veio a resgatar do esquecimento outros nomes e Portugal reconciliou-se com alguns dos seus concidadãos que ocupam, hoje, um lugar singular entre aqueles que o Yad Vashem (Autoridade para a Memória e Heróis do Holocausto, em Jerusalém) reconhece como ‘justos entre as nações’. Recordo-me de, com o tempo, me ocorrer que nos faltava um Steven Spielberg que levasse à tela do cinema a nobreza e ousadia de Sousa Mendes, a quem devem a vida mais de 10 mil judeus, ou a ação de Sampaio Garrido e Teixeira Branquinho, que salvaram cerca de 1000 pessoas, ou a discreta mas corajosa decisão da família Brito Mendes, a quem se deve a vida de uma menina judia (destas comoventes histórias nos fala, com detalhe, o livro que aqui apresentamos).
A leitura do livro de António Marujo, ‘A lista do Padre Carreira’, que a editora Vogais faz chegar às mãos dos leitores portugueses, fez-me regressar a 1994. António Marujo, qual Spielberg no cinema, conta, com detalhe e fundamentação, a ousadia e coragem de um padre português, no tempo da Roma tomada pelos nazis, entre 1943 e 1944, e a quem o Yad Vashem reconheceu, em 2014, a condição de ‘justo entre as nações’. Como em 1994, a emoção da leitura fez-me silenciar perante a memória de um homem que ousou arriscar a vida, concedendo ‘asilo e hospitalidade no Colégio [Pontifício Português] a várias pessoas que eram perseguidas na base de leis injustas e desumanas’. Mas António Marujo não nos oferece, apenas (e já não seria pouco!), uma narrativa vívida e intensa das condicionantes da decisão do Padre Carreira, permitindo-nos regressar àquela época e compreender os meandros que adensam a carga de coragem que envolvem a escolha do padre português. Também outros problemas que dizem respeito à ação da Igreja no contexto da II Guerra Mundial são aqui retratados, com verdade e honestidade, numa descrição que vai à raiz de cada matéria. A discussão sobre a atuação do Papa Pio XII encontra aqui novos elementos que tornam incontornável a visita a este livro para uma qualquer análise que se pretenda honesta e documentada.
Se é certo que a biografia de alguém é sempre um campo aberto, não é infundada a afirmação de que «este livro é a biografia definitiva» do Padre Carreira. António Marujo, que faz jus aos seus méritos de jornalista premiado internacionalmente (recebeu, por duas vezes, o Prémio Europeu de Jornalismo religioso na imprensa não-confessional, atribuído pela Fundação Templeton e Conferência das Igrejas Europeias, em 1995 e 2006), descreve, aqui, com uma fluidez de escrita que prende quem a lê, os momentos mais marcantes de uma vida, que, afirmando-se como singular pela decisão de acolher os refugiados que se salvaram no Colégio Pontifício Português, não se esgota nesse tempo e escolha. A coerência da vida que se configura nessa escolha transparece nos muitos documentos, nos diversos acontecimentos e múltiplos testemunhos com que se constrói a narrativa. António Marujo não deixa pontas soltas. O que diz tem motivos: justifica-o e fundamenta-o. É por isso que este é um livro ímpar. Lê-lo é participar de um ato de justiça porque resgata do esquecimento a memória de um justo esquecido.

Caminhada pela vida | Contra rótulos e preconceitos, os factos. Simplesmente, os factos

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