sexta-feira, junho 30, 2017

VOLUNTARIADO - Não estamos proibidos de sonhar uma sociedade diferente

A Terra e a sociedade a que pertencemos são mais do que um contexto em que vivemos: são uma tarefa! Tal visão desloca a nossa atitude de uma passiva reivindicação de direitos, em que o centro sou eu próprio, para um outro registo, assente no reconhecimento de deveres que desperta em cada um a sensibilidade ética que inquieta e desafia e coloca o bem do outro no horizonte da nossa ação.
Sem querer, a nossa própria linguagem manifesta o registo que aqui denunciamos.
Não é pouco frequente ouvir-se a ideia de que a liberdade de cada um acaba onde começa a do outro. Aliás, a frase é repetida como se fosse condição de sobrevivência da sociedade.
Na realidade, ela é, antes, a condição para o seu fim.
Poucos saberão que tal frase se deve a Herbert Spencer, um dos maiores representantes do liberalismo clássico, e defensor de outras ideias como a da «sobrevivência dos mais fracos», que lhe valeu o título de criador do darwinismo social.
Na sua conceção, a existência do outro é um estorvo à minha própria realização, pelo que cabe delimitar, com toda a precisão, onde começa o meu terreno e onde acaba o do outro. O seu pensamento é, aliás, retomado na perspetiva do existencialismo de Sartre, para quem «o inferno são os outros».
Pois bem, numa tal visão, teríamos de supor que a liberdade de cada um precisaria da extinção do outro para aumentar, o que contraria a ideia original de sociedade. A própria etimologia da palavra «sociedade» mostra que ela é a reunião de «amigos» (‘socius’, em latim, quer dizer «amigo»). Se ainda formos mais longe, poderemos socorrer-nos da psicologia para compreender que o nascimento da consciência de si próprio depende da existência dos outros. Sem os outros, nenhuma criança viria a ter consciência de si mesma. São os outros que fazem nascer, nela e em cada um de nós, a consciência de si mesma. A própria economia ou a pedagogia ou a biologia demonstram, à saciedade, que nenhum ser nasce de si mesmo, gera riqueza por si mesmo ou cresce como pessoa sem os outros. Os outros são a condição de possibilidade do nascimento do eu e não o seu obstáculo.

Não há liberdade sem os outros
Contrariamente à frase que reproduzíamos, mais acima, a nossa liberdade é diretamente proporcional à liberdade dos outros: a nossa só cresce quando faz crescer a dos outros e diminui quando diminui as dos outros. Não há liberdade de alguém contra a liberdade de outro. Pode haver arbitrariedade ou discricionariedade, mas não liberdade. Porque ser livre é poder, em cada momento, escolher, de entre diversas possibilidades, aquela que mais realiza, seja o próprio, sejam os demais. Liberdade que destrói é arbitrariedade, é vontade indeterminada, mas não é liberdade.
Ora, o voluntário é alguém que sabe que a Terra é uma tarefa de todos nós. A Terra, como afirma o Papa Francisco, na sua belíssima encíclica «Laudato Si’», é casa comum, é casa de todos, invocando a própria etimologia da palavra «ecologia», que quer dizer «o estudo da casa» (em grego, «oikos» é a casa, a morada de alguém, a casa e o aido). Sendo casa comum, casa de todos, constitui-se como uma tarefa, por respeito aos que viveram, aos que connosco vivem hoje, e aos que viverão.
E, assim como caberá perguntar o que faço pelo bem da casa de todos, é importante interrogarmo-nos sobre que contributo ativo dou para que a rede de laços estabelecida nesta casa comum (a sociedade) seja cada vez mais autêntica (uma relação de «amigos») e não apenas uma coabitação de indivíduos. É, aliás, a pergunta que se colocam os que refletem sobre o futuro da nossa sociedade, como bem recordava, recentemente, em Aveiro, o professor Walter Osswald, um dos mestres da Bioética em Portugal: queremos, realmente, uma sociedade em que as relações se estabelecem entre pessoas interdependentes, ou, meramente, um território onde possam coabitar indivíduos isolados e fechados sobre si?

Que sociedade pretendemos?
O voluntário faz uma escolha e a sua mera existência já é uma interpelação: um mundo melhor é possível, um mundo onde somos pessoas, onde nos sabemos interdependentes em relação aos demais e não meros indivíduos autossuficientes e sem preocupação com os demais, nem os demais consigo mesmo. Valerá a pena recordar, aqui, invocando a minha própria formação teológica, que o conceito de pessoa diz muito mais do que o de indivíduo. O indivíduo é da ordem da quantificação. Posso ter um indivíduo da espécie canina ou felina. Mas já não posso dizer que tenho uma pessoa da espécie «canina» ou da espécie «felina». Na verdade, o termo «pessoa» diz muito mais do que o termo «indivíduo». Aliás, é no contexto da reflexão teológica sobre a natureza trinitária de Deus que surge o conceito de pessoa. Não se podia dizer que Deus era três «indivíduos». Seria um triteísmo e, por isso, um absurdo. Ora, o termo pessoa dizia o que se pretendia. Um ser individual de natureza racional e relacional. O conceito de pessoa introduzia a dimensão da racionalidade e da relacionalidade que faltavam à ideia de indivíduo, que apenas quantificava. Individualizar é quantificar, é dizer que tenho aqui uma unidade, mas nada mais me diz. Falta a ideia de relacionalidade que o conceito de pessoa assegura.
Pois bem… Tendo em conta este pressuposto, convém ter consciência de que o tipo de mundo que pretendemos e que sonhamos se constrói nas pequenas decisões que vamos tomando, nos pequenos passos que vamos dando, nas escolhas que fazemos, nas leis que formulamos, nos modelos que adotamos.
Como bem recordava Martin Niemöller, um pastor luterano, após ter sido libertado do campo de concentração nazi, num poema intitulado «e não sobrou ninguém»: "Quando os nazis levaram os comunistas, eu calei-me, porque, afinal, eu não era comunista. Quando eles prenderam os sociais-democratas, eu calei-me, porque, afinal, eu não era social-democrata. Quando eles levaram os sindicalistas, eu não protestei, porque, afinal, eu não era sindicalista. Quando levaram os judeus, eu não protestei, porque, afinal, eu não era judeu. Quando eles me levaram, não havia mais quem protestasse."

Não é por uma questão de estratégia que devemos preocupar-nos com os outros: é por respeito pela nossa condição humana – ser humano é ser frágil, é ser feito de «húmus» (‘humano’ vem de ‘húmus’), é ser incompleto. A nossa completude só se encontra nos outros. De outro modo, pouco ou nada somos. Somos uma ilusão. E as ilusões rapidamente redundam em desilusão.

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