sábado, abril 28, 2018

A estratégia da desconstrução geral


Construir é sempre uma tarefa lenta, morosa, paciente. Contrasta com a facilidade com que se pode destruir. É, aliás, para alguns, este um dos grandes argumentos de que o mundo tem de supor a existência de Deus, pois só uma vontade férrea, capaz de conferir dinamismo de autossuperação da destruição, é que poderia garantir o sucesso da vida diante da violência da morte e do inesperado da destruição.
Mas regressemos ao ponto de partida.
Sabemos quão difícil é construir os liames com que se une uma sociedade. E sabemos, também, como tão facilmente é possível gerar ondas de destruição que degradam o ‘cimento’ que gerava a força que unia.
Assiste-se a um poderoso movimento de desconstrução intencional dos liames que cimentam os laços que nos ligam, enquanto seres sociais.
Não se pense que este processo é ingénuo, gratuito e sem intenção. Ele corresponde a um desiderato bem definido. Basta que se leiam com atenção livros como «O livro negro da Revolução francesa» ou «dez livros que estragaram o mundo e mais cinco que também não ajudaram nada» ou, mais recentemente, «contributos para história do feminismo», todos editados pela Alêtheia, uma editora que vai arriscando trazer à mão dos leitores preciosidades que fazem repensar o modo como se vai fazendo a política, no ocidente.
Une todos estes livros o reconhecimento de que se está a assistir, de há dois séculos e meio para cá, a um processo de desconstrução intencional.
Como já descrevíamos, em artigo anterior, a intenção é deixar o indivíduo sozinho perante o Estado. Isso mesmo sustentava Robespierre, um dos arautos da revolução francesa, que acabou vítima da vertigem homicida que ele próprio protagonizou. Na sua perspetiva, - defendida por muitos, hoje, com outras justificações -, «a pátria tem o direito de educar os seus filhos; ela não pode confiar este depósito ao orgulho das famílias, nem aos preconceitos dos particulares, alimentos permanentes da aristocracia e de um federalismo doméstico que retrai as almas ao isolá-las.» (Escande, O livro negro da revolução francesa, p.724). Este é horizonte que legitima que tudo se faça para relativizar o papel da família, dos laços familiares e que se organize a ‘sociedade’ como mera soma de indivíduos ou, como diz, acertadamente, Braga da Cruz, reduzir a sociedade a «uma população sobre um território». Repare-se como é fácil desconstruir e gerar a dúvida que origina o caos. Imagine-se que o código da estrada, temporariamente, invertia o significado dos sinais. Aplique-se, por exemplo, à cor dos semáforos. Imagine que o verde passava a significar que se tinha de parar e que o vermelho era para avançar.
Quando alguém tentasse repor a verdade, a confusão já estava gerada, de modo que só após muito caos e destruição e, eventualmente, após decisão autoritária é que se conseguiria repor os índices de confiança na sinalética que existia, antes deste processo de desconstrução.
Algo semelhante parece pretender-se para a sociedade: desconstruir para que mais facilmente se assegure lugar para os que pretendem o poder.
Aliás, há algo de preocupante no modo como se legisla, de há algumas décadas para cá. Não se legisla com a preocupação de subordinar a lei a valores comuns, marca do ‘cimento’ de que acima falávamos, mas legisla-se porque se tem poder. Pode configurar-se tal como uma nova ditadura, já não de um só titular, mas de um Parlamento que se sente sempre legitimado para decidir, desde que corresponda à sua ideologia.
Quem legitimou, por exemplo, este parlamento para discutir e, eventualmente, aprovar legislação sobre a eutanásia? Ou teremos de concluir que o Parlamento, porque pode, está legitimado para legislar. Pode, de facto, tem poder, mas está legitimado?
Gustavo Zagrebeslky, que foi presidente do Tribunal Constitucional de Itália, alerta para os perigos das democracias que se consideram legitimadas para legislar sobre tudo, até sobre os valores que estruturam a sociedade que deviam servir. Chama a estas ‘democracias céticas’, para quem o que interessa é conservar o poder, bastando-se com os indicadores das sondagens, ou ‘democracias dogmáticas’, possuidoras da verdade absoluta, sentindo-se, por isso, autorizadas a mandar na própria vida e morte dos cidadãos. Por oposição a estes dois modelos de democracia, Zagrebelsky propõe o que chama «democracias críticas», que poderíamos designar como ‘autocríticas’ que se sabem frágeis e suscetíveis de manipulação, pelo que não legislam de modo a pôr em causa o que une os cidadãos. Não legislam sobre a vida e a morte, mas acolhem os limites próprios decorrentes da natureza humana.
E este é o problema de uma certa visão da política e da democracia: aquela que entende que tudo é cultural, é feito pela vontade humana, sem dever de respeitar algo que lhe seja anterior, a própria natureza humana.
Veja-se como esta síntese nos ajuda a perceber quão pantanosas e desconstrucionistas (criamos o neologismo porque nos referimos a um processo de desconstrução programada…) são as medidas que vão sendo adotadas: aborto (e a legitimação da violência da mãe sobre o filho), barrigas de aluguer (e o afastamento entre a geração e o afeto), mudança de sexo aos 16 anos (e a dissociação entre a natureza e a identidade, com a implicação acrescida de dissociar o indivíduo dos seus laços familiares, na medida em que se preconiza que os pais nada tenham a ver com esta decisão), a eutanásia (e a quebra da solidariedade na morte, que se reduz a uma mera experiência solitária)…
Quem pode, só porque pode, está legitimado para legislar? Assim o entenderam todos os ditadores, ao longo dos tempos! E sempre sob a capa de o fazerem em nome do povo e do poder que este lhes conferia.
Se ‘poder’ significar que é ‘lícito fazer’, vale a pena perguntar se seria legítimo a alguém com o poder de ler o pensamento dos outros vir a fazê-lo. Invoco esta hipótese que é imagem de uma fronteira que ainda não foi possível transpor, mas que, seguramente, muitos gostariam de superar. Ora, imagine-se que alguém, um dia, tivesse esse poder. Porque o ‘pode’ fazer, tem legitimidade para o fazer? Quais os limites que devemos aceitar impor-nos? Ou, em definitivo, o limite será o do poder? Só não devemos fazer o que não podemos fazer? Ou ainda há lugar para a ética personalista e humanizadora?
Não será destes messianismos que falava o Presidente da República, no discurso do dia da liberdade? Que liberdade pretendemos? A de uma vontade arbitrária, discricionária, entendida como puro voluntarismo do indivíduo, ou a de uma vontade que segue a inteligência e respeita a luz da verdade?
É preciso olhar para diante para saber sobre que chão pousamos os pés. Mas muitos deixaram de erguer o olhar tão sumidos estão na vertigem do presente.
Se queremos continuar a viver em sociedade, não podemos deixar que a desconstrução vença. Porque sairemos derrotados, como os filhos de todas as revoluções.

terça-feira, abril 17, 2018

Eutanásia: poderei continuar a dizer que não sei?


A eutanásia está em discussão. Não que o pareça querer a Assembleia da República que dá ideia de pretender mudar a legislação, sem qualquer discussão, como se fosse uma inevitabilidade. À sociedade civil, aos cidadãos mobilizados, às instituições que trabalham com as famílias e a tantos outros se deve que este continue a ser um tema e uma preocupação.
Mas não deixa de inquietar que se esteja a fazer tudo para que pareça que este é um não-assunto.
Aliás, bem sabem os que defendem a sua legalização que importa mudar a lei (e o mais rápido e sem alvoroço possível) porque, depois de tal mudança, a censura e recusa coletiva que recai sobre tal prática deixará de se exercer, reduzindo-se à frieza de números e estatísticas a crueza de tal ato. Por muito que o pretendam negar, a eutanásia é um ato de violência; a pedido daquele sobre quem recai, mas não deixa de ser uma violência. E toda a violência, mesmo quando consentida ou até pedida, alerta e inquieta a nossa humanidade. E é essa inquietação que alguns querem sossegar.
Os factos deverão, porém, dizer mais do que a ideologia que, sob a aparência de compaixão, quer substituir a nossa coletiva solidariedade com quem sofre.
Invoco, para este reflexão, dados coligidos pela Federação Portuguesa pela Vida, junto de fontes oficiais dos poucos países onde esta prática está legalizada.
O primeiro dado a reter é, precisamente, o da escassez de países que, em todo o mundo, legalizaram tal prática. Apenas a Holanda, o Luxemburgo, a Bélgica (também a eutanásia praticada sobre crianças), a Colômbia e o Canadá. Outros países, como a Suíça, a Alemanha e cinco Estados americanos legalizaram o suicídio assistido. Curioso é verificar que muitos cidadãos destes países procuram, hoje em dia, quando atingem determinada idade ou condição de saúde, refúgio nos países vizinhos onde esta prática não está legalizada, pois temem ser vítimas desta, sob a capa de um qualquer procedimento formal. Queremos nós que Portugal integre a lista destes países que a história virá a colocar sob o olhar denunciador e crítico de que cederam à desumanização?
Os números demonstram que a prática deste ato tende a aumentar com a legalização, confirmando o que muitos designam como o efeito de «rampa deslizante» que começa com a afirmação de que só se exercerá em casos excecionais, acabando, com o tempo, por se alargar a muitos motivos não previstos e até recusados, inicialmente.
Na Holanda, entre 2002 (quando foi legalizada) e 2016, o número de casos triplicou, assim como a percentagem de mortes por eutanásia no total de mortes. Em 2016, 3,9% das mortes foram, na Holanda, por motivo de prática de eutanásia: mais de 6000! Na Bélgica, entre 2002 e 2015, a prática da eutanásia aumentou 5 vezes, sendo que a percentagem de mortes por eutanásia no total de mortes aumentou, percentualmente, nove vezes.
Em 2015, 165 pessoas foram, na Holanda, eutanasiadas por motivo de demência ou doença psiquiátrica, havendo registo de casos em que esta prática foi aplicada de modo forçado. Na Bélgica, há registos de mortes por eutanásia em que os familiares não foram sequer informados da sua prática.
No caso da Suíça, em que a eutanásia não está legalizada, mas sim o suicídio assistido, verifica-se que mais de 95% dos casos em que se recorre a esta prática se referem a estrangeiros, levantando-se a questão do dito «turismo de morte». A quem serve tal lei?
Juntem-se a estes dados estatísticos outras informações não menos relevantes.
Numa entrevista concedida à TSF, em 2016, uma enfermeira, de nome Verónica, que se encontrava então a trabalhar na Bélgica, testemunhava que participara, em Bruxelas, num ato de eutanásia exercido sobre uma mulher de cerca de 70 anos que não tinha qualquer doença. A somar a este facto que denuncia como a compaixão é, afinal, pretexto para uma mudança de lei que transfigura a nossa conceção de vida em sociedade, acrescente-se um outro dado não menos relevante: a enfermeira reconhecia que não tivera tempo para decidir sobre se participar ou não em tal ato. Fora chamada e participara, sem saber com clareza aquilo em que ia ver-se envolvida. A insensibilidade coletiva perante uma prática legitimada pela lei conduz à perversão do que deva ser um ato médico e um ato de enfermagem.
Reconhecia a mesma enfermeira que não voltaria a participar, concluindo que a eutanásia «é um método fácil de desistência».
Acresce a estes dados e testemunhos a constatação de que Portugal foi dos primeiros países a opor-se à pena de morte, a defender uma justiça penal capaz de respeitar a dignidade humana que subsiste em cada um, mesmo quando as circunstâncias fazem diminuir a sua visibilidade e perceção, o que está em contracorrente com a visão legitimadora da eutanásia. Esta só poderia admitir-se se entendêssemos que a dignidade humana se perde em determinadas circunstâncias. A visão que sempre tem vencido, em Portugal, não é essa. Legalizar a eutanásia põe em questão tais pressupostos e afigura-se contraditório com a defesa, no artigo 24 da Constituição da República Portuguesa, de que «a vida humana é inviolável».
Fazemos de conta que não sabemos?
Não é descabido recordar, como bem recordava Martin Niemöller que, se deixarmos que levem os outros porque eles nada têm a ver connosco, lá chegará o dia em que nos levarão a nós sem haver quem nos venha defender, porque já todos foram levados, antes.
Poderemos continuar a dizer que não sabemos? Poderemos! Mas, então, acusar-nos-á a consciência por não termos tentado saber. Talvez já demasiado tarde, porém. Estou certo de que ainda estamos a tempo de evitar que a doce sedução da morte se abata sobre todos. Porque não é de romantismos que estamos a falar, mas de como nos vemos e queremos continuar a pensar-nos. Que humanidade queremos continuar a ser?
Já dizia John Donne: «se ouvires ao longe os sinos, não te perguntes por quem os sinos dobram; os sinos dobram por ti». Na morte de alguém morremos também nós. Na morte, por desistência, de um de nós repercute-se a desistência de todos. Porque vivemos, solidariamente e morremos solidariamente. Quando alguém morre, morre mais do que apenas ele. Morrem todos os nós e laços que com ele se enlearam. É esta visão que querem derrotar os que defendem a legalização da eutanásia. Com a legalização da eutanásia, morrer deixa de ser um ato pessoal, solidário; passa a mero ato individual e solitário.
Podemos imaginar que nada temos a ver com a morte de alguém, mas há algo de frio em tal imagem. A frieza de quem nos sussurra ao ouvido que, quando morrermos, ninguém quererá saber de nós, como se a morte só a nós dissesse respeito.
A obra de misericórdia que estabelecia que deveríamos «enterrar os mortos» era mais do que a defesa da salubridade da comunidade: era a recordação da nossa solidária condição na morte. Solidariedade que a legalização da eutanásia se propõe dissolver.
Com o nosso consentimento?...

Hollywood e a denúncia de assédio sexual



 Não foi sem alguma surpresa que se assistiu ao surgimento desta onda mundial de denúncia do assédio sexual exercido sobre quem pretendia fazer uma carreira no mundo do cinema, em geral, e em Hollywood, ‘Meca’ da sétima arte, em particular. A surpresa não se deverá ao conteúdo (muitos, em surdina, ou de forma mais ou menos clara já o vinham dizendo), mas sim à origem. Hollywood sempre foi nome associado ao culto do corpo, parecendo promover uma cultura da eterna juventude, dificilmente podendo-se imaginar que dali viria a crítica a uma tal visão da vida. Mas veio e em boa hora.
E, para quem queira dispor-se a vislumbrar os sinais dos tempos, pode ali descortinar linhas merecedoras de detida reflexão.
Sem grandes delongas, reteremos quatro vetores. Muitos outros poderiam ser tomados, mas afiguram-se-nos estes como os mais relevantes.
1.      Em primeiro lugar, importa guardar ideia clara de que o assédio é inaceitável, enquanto exercício despótico de alguém com poder sobre outrem que se encontra em situação de fragilidade e dependência. É uma prática atentatória da dignidade da pessoa humana, enquanto reduz a vítima à condição de objeto, quando, pela sua natureza, deveria ser sempre considerado como fim em si mesmo. Disso nos dá certeza segura a afirmação da dignidade da pessoa humana. O assédio é, sempre, atentado contra essa mesma dignidade, e debilita as demais relações interpessoais, entre as quais, as laborais, em que, no caso em análise, tais ocorreram. O trabalho, o emprego, que deveria ser fator de realização humana, afigura-se, neste contexto, fator de degradação e de infelicidade.
2.      Em segundo lugar, não podemos deixar de notar, na discussão sobre esta matéria, alguma hipocrisia e sinais de «estrutura de pecado» (categoria analisada com detenção por João Paulo II, em 1987, na Encíclica Sollicitudo Rei Socialis). Na verdade, a multiplicação da situações e o carácter entranhado desta prática entre os poderosos de Hollywood levam a crer tratar-se de uma espécie de cultura em que a liberdade individual já parecia sumida, gerando uma acomodação escravizadora. Neste quadro, esta denúncia com fóruns mundiais revelar-se-á positiva se houver a coragem para inverter o processo e para corrigir as lógicas. A incapacidade, porém, nesta era mediática, para fazer as perguntas que importam, em vez de se bastar em fazer uma caça a alguns indivíduos, faz temer que não se saiba fazer a leitura devida.
3.      Em terceiro lugar, e seguindo a linha de raciocínio de José Maria Duque, no seu artigo Legalizar o Harvey Weinstein nacional (Observador, 02/02/17), importa associar à denúncia do assédio sexual uma outra denúncia: a de que alguns se sentem muito ofendidos (e bem!) quando a grande imprensa cria uma onda de repúdio do assédio que transforma as mulheres em objeto sexual de quem tem poder, mas são, depois, e de forma incoerente, favoráveis à legalização de práticas, como a da prostituição, em que também aqui a mulher é transformada em objeto, com a agravante de o ser a coberto da lei… Uma tal falta de lógica tem, infelizmente, sido frequente na hora de legislar, em Portugal. Esperemos que a denúncia oportuna desperte as consciências.
4.      Em quarto lugar, importa sublinhar o significativo sinal que esta onda de repúdio dá a todo o mundo, ao dizer-nos que nem tudo, nas vivências da sexualidade, pode aceitar-se ou consentir-se. Na verdade, vivemos num tempo que pareceu encaminhar-nos para a convicção de que tudo, todas as atividades humanas, eram suscetíveis de leitura ética e moral, mas parecia gerar-se a ideia de que o âmbito da sexualidade estava excluído dessas leituras. Defendia-se, inclusive, que, dado que era matéria da intimidade de cada um, o que fosse feito nesse âmbito era sempre aceitável moralmente. O cristianismo sempre se insurgiu contra essa visão. E, curiosamente, a filosofia dos meados do século XX, em particular a corrente do existencialismo de Gabriel Marcel ou da fenomenologia de Merleau-Ponty, veio dar razão à abordagem cristã. Mas a sociedade não parecia ir nesse sentido.
Sejamos ainda mais claros. Esta onda, que deveria dar razão à visão cristã sobre a sexualidade, não o vai fazer, seguramente, e, porque estamos tomados por uma vertigem sem tempo e sem o cuidado de ler o que, de facto, se diz, ficará sempre e só pelos sons imediatos, como ocorreu com a polémica que envolveu o Patriarca de Lisboa. Ninguém lê o que se escreve; todos se ficam pelo seguidismo do que disseram as primeiras páginas de uns quantos jornais ou as notícias de abertura de noticiários.
Mas, regressemos ao ponto onde nos encontrávamos. O que diz a visão cristã sobre a sexualidade e o que veio a ser confirmado pela filosofia?Em primeiro lugar, a visão cristã sobre a sexualidade sempre sublinhou a convicção de que a realização humana se opera em cada gesto, em cada ato, em cada experiência vivida. Assim também no que concerne às vivências de sexualidade. Nenhuma vivência é indiferente ou inócua. Toda a vivência sexual, afetiva, emocional afeta aquele que a vivencia. A filosofia de Merleau-Ponty chama a isto «o corpo vivido». O que vivo, corporeamente, fica ‘incorporado’ no que sou. Não me é alheio nem indiferente. É por isso que as vivências de sexualidade devem, na perspetiva cristã, ocorrer no contexto de um projeto de vida. De outro modo, pretendem-se vazias e sem sentido, o que é contraditório.Mais, ainda. A esta luz, o que determina a moralidade de um determinado ato não é a vontade e a liberdade individual, mas antes a correspondência à realização da pessoa humana que se envolve nesse mesmo ato. Isto é, mesmo que um ato seja consentido, não deixa de ser imoral se não realizar a pessoa humana e se a objetualizar. É fácil depreender daqui as consequências. Mesmo se o assédio veio a ser consentido (porque se pressentiu que era o que restava; porque se fez de conta que a situação haveria de passar ou por qualquer outro motivo…), mesmo se a prática da prostituição é suportada por quem a pratica, tal não se torna ética e moralmente bom porque foi aceite. Continua a ser inaceitável, eticamente.
A esta luz, o que pode esperar-se e desejar-se é que o mundo que despertou para a sujidade que se escondia em Hollywood admita, por fim, que (como dizia Terêncio, autor latino do século II a.C.) «nada do que é humano nos é estranho». Como pode pensar-se a sexualidade como se ela não fosse humana? Ou querer-se-á que a consideremos como subumana?
Talvez a isto se deva tanta resistência à visão cristã sobre a vida e sobre a sexualidade, tão genialmente descrita na encíclica «Deus Caritas Est», de Bento XVI: à intenção de a reduzir a pura mercadoria, tornando o homem um produto ao dispor de quem tem poder. Uma tal visão encontrará, porém, no cristianismo, um manso mas resistente adversário. Porque cada homem e cada mulher é sinal e imagem de uma Realidade bem maior, de que cada prática e cada gesto é expressão e genuína manifestação.


'Regresso a Ítaca no sonho do Éden' | De Ícaro a Pelágio: asas de cera que elevam o orgulho humano

                          Rubrica 'Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ (Artigos publicados na revista Mundo Rural - Acção Católica Rural)...